De súbito, como se o céu nos caísse sobre a cabeça ou tivéssemos acordado dum sono de décadas, vimos o País a reagir à informação e à televisão que temos. Primeiro foi o sindicato dos jornalistas a propósito da exploração televisiva da dor do desastre de Entre-os-Rios; depois, foi a Alta Autoridade para a Comunicação Social a reagir - finalmente - à exploração abjecta pela televisão da intimidade da vida privada, com o único objectivo de ganhar dinheiro fácil. Depois vieram ministros e deputados, partidos políticos e analistas de jornais, alguns altos membros do clero e até o Presidente da República, enfim, todas as boas consciências do País, a insurgir-se contra a degradação da comunicação, o desprezo dos valores, a venda ao desbarato de toda a ética.
Digamos que já não era sem tempo. Se é certo que vale mais tarde do que nunca, o estado da comunicação social e a cultura da imagem atingiram tal estado de degradação que há muito se justificava a intervenção dos poderes instituídos.
Alguns factos recentes foram apenas a gota de água que fez transbordar o copo da ignomínia, do oportunismo galopante, da febre do ouro dos novos conquistadores. Uma produtora de sucesso fácil declarava que quem tem ética passa fome. A frase serviu de mote a um programa cultural para lançar a questão aos espectadores. Não sei quais foram as respostas, mas, a avaliar pelas respostas dadas a questões semelhantes nas conversas da internet, imagino quais tenham sido as reacções do público. Para mim, a resposta seria simples: quem tem ética poderá passar fome, mas sem ética engordam os porcos.
Como se chegou a isto? Cada um de nós tem as suas próprias explicações, que são certamente múltiplas; pela minha parte, penso que a febre do dinheiro que se incentivou a partir dos anos oitenta, no contexto da adesão à Europa dos ricos, alguma responsabilidade terá no aviltar de valores tradicionais, que por serem tradicionais não são conservadores: o reconhecimento do mérito, o trabalho persistente, a formação constante e interessada, o respeito dos outros e das instituições, longe de serem velharias doutros tempos, são autênticos pressupostos da vida em sociedade, verdadeiros padrões pelos quais se avaliam as qualidades dos povos e dos cidadãos. Mas o dinheiro fácil que se espalhou a rodos e sem critério pelos corredores do poder, pelos inventores de projectos no papel, pelos fabricantes de balanços e previsões artificiais, pelos banqueiros ávidos de fusões e aquisições, pelos promotores da Bolsa-roleta, pelos empresários do subsídio a fundo perdido, pelos agricultores dos raids todo-o-terreno e do campo de golfe, criou uma ilusão de progresso constante, a permitir o crédito sem limites e a consequente exuberância dos sinais exteriores do triunfo.
As televisões acompanharam a moda e semearam mais sonhos: afinal, só existe o que se vê, a imagem vale mais que o conteúdo, um pedaço de cara (ou de outra parte mais sensual do corpo) vale mais que uma boa cabeça, a participação num programa medíocre rende mais que um curso universitário, um Zé Cabra tem mais audiência que um concerto da orquestra sinfónica e qualquer Zé Maria passa as palhetas a um Professor Hermano Saraiva.
Quem é que quer saber da ética? E onde está a Política? Se é verdade que a Política é a arte do possível, manda a ética que os políticos façam da Política a arte de tornar possível o que é necessário, porque o que é necessário é o programa ético da acção política. Quando os políticos se demitem deste imperativo ético, passam a ser meros vendedores de ilusões, limitam-se a gerir interesses e calendários eleitorais, deixam os grupos de pressão a disputarem, em surdina e sem regras, as rédeas do poder.
É neste contexto que deve ser analisada a comunicação em geral e a televisão em particular. Como dizia há dias o analista Moita Flores, em artigo de opinião publicado no Diário de Notícias, a televisão não é a gestão de programas mas a gestão de intervalos. De facto, é durante os intervalos que as estações fazem o seu volume de negócios, sendo os programas um mero pretexto. O único canal francês que aceitou transmitir uma versão do Big Brother passou o preço do spot publicitário nos intervalos para o dobro, passando um anúncio de vinte segundos a valer qualquer coisa como oito mil contos.
O que é espantoso é que uma empresa cuja actividade essencial é a publicidade e o marketing possa abrigar-se sob o chapéu dos direitos instituídos a favor dos órgãos de comunicação social. Porque uma coisa é proteger a liberdade de opinião e a pluralidade da imprensa e outra, totalmente diferente, é que esta liberdade seja usada para proteger actividades que nada têm a ver com aqueles valores. Se as televisões produzem informação durante duas ou três horas por dia, há que lhes proteger a liberdade de informação, a confidencialidade das fontes, com a correspondente exigência da ética jornalística; se fazem marketing durante vinte horas, devem sujeitar-se às regras de qualquer actividade económica. Mas não se invoque a liberdade da imprensa para vender a dignidade e os direitos inalienáveis das pessoas, como o direito à imagem, à intimidade da vida privada, ao bom nome, à boa reputação. E um aviso aos cidadãos incautos: os direitos fundamentais são instituídos para protecção dos indivíduos mas também da própria sociedade. Não são alienáveis, mesmo por acordo.
Se as televisões não forem capazes de assumir as suas responsabilidades éticas, então cabe à Política obrigá-las a fazê-lo, sem complexos de autoritarismo ou má consciência de censuras passadas.