Teresa A. Ferreira

Teresa A. Ferreira

Estórias à Lareira: O Naufrágio

 

O dia anunciava-se, em todo o seu esplendor, iluminando com os primeiros raios a casa da Violeta e do Alexandre. Era hora de recomeçar. Recomeçar…só podia ser vivido em alegria.

— Bom dia, minha querida!

— Que preguiça boa… — Violeta espreguiçava-se como um gato que acabara de acordar.

— Dormiste bem?

— Se dormi! Melhor era impossível, meu querido. — Violeta fazia um sorriso malandro, olhando de soslaio para o marido.

— E a minha princesa quer repetir a noite de ontem?

— Ai, Alexandre, tens cá um fôlego, homem de Deus!

— Olha… temos de aproveitar enquanto isto ainda funciona. Qualquer dia, queremos e só lá vai com o comprimido azul! — riam, a bom rir, como duas almas livres.

— Pensas que haverá alguém mais feliz do que nós, Alexandre?

— Isso não te sei dizer, mas que sabemos aproveitar…

— Ó, meu anjo! É tão bom ir à lua e voltar sem sair do lugar!

— Fico tão feliz! — dito isto, cobria-a de beijos, beijos doces, quentes, ternurentos que só quem ama sabe dar.

— Logo à noite continuamos, pode ser? Agora, apetece-me ficar um pouco mais na cama a fazer ronha. — Violeta enroscava-se no edredão.

— Ronha, ronha sua malandreca! Descansa mais um pouco.  

As rotinas cumpriam-se com desvelo, retocando, aqui e acolá, algo merecedor.

Num ápice, Alexandre foi preparar o pequeno-almoço e acender o lume, tudo devidamente organizado, não fosse meticuloso e atento aos pormenores. O Alexandre?! Um cavalheiro de coração apaixonado pela sua amada, Violeta. Bastava mirá-lo com atenção, para se perceber o amor e carinho que lhe dedicava. Não sendo um homem de muitas palavras, demonstrava todo o afeto em gestos subtis, mas de grande generosidade e entrega.

Quando Violeta espreitou pela vidraça, sentiu como que…um doce arrepio. Um imenso manto vestia, de imaculada alvura, os montes das cercanias. Por breves instantes, permaneceu perdida em deleite. Talvez não se tenha perdido; talvez se tenha reencontrado em sonhos mágicos, fantasiando o próximo poema, descrevendo todo aquele sentir; talvez tenha viajado para longínquos destinos; talvez…

Vestiu um robe de chambre e foi até à cozinha, onde encontrou o marido a terminar a preparação do pequeno-almoço. Sentou-se e continuou envolta naquela magia que a transportava para outros tempos, onde os seus antepassados foram tão felizes. Resolveu que devia partilhar esta alegria. Resoluta, como sempre, pediu ao marido que lhe trouxesse grelos da horta, quando viesse almoçar, dizendo que convidaria o doutor Henrique e o António para jantarem lá em casa. Não acrescentou nenhuma explicação.

Os grelos, para serem bons, precisam de ser cozidos duas vezes: a primeira, pela geada; e a segunda, na panela. Há melhor manjar que a comida cozinhada no pote à lareira? Grelos e batatas com pele cozidos no pote, chouriço azedo grelhado nas brasas, azeite novo, vinho tinto, pão cozido no forno a lenha, azeitonas, queijo de cabra, etc., tudo caseiro e temperado com amor.

Se bem pensou, melhor fez. Telefonou aos amigos, e tratou dos preparativos para recebê-los com todos os desvelos, que uma boa amizade requer.

Por volta das dezoito horas, noite cerrada em tempo de invernia, os amigos anunciaram-se com um desatino dos cães a ladrar, não por desconhecerem as visitas, mas para avisarem os donos da casa.

— Podemos?

— Entre quem é, faça o favor! — dizia Alexandre, erguendo-se do escano para cumprimentar os convidados.

Após trocarem uns abraços bem arrochados e um beijo afetuoso à Violeta, sentaram-se nos escanos à lareira, estendendo as mãos em direção ao lume, para se aquecerem.

— Que frio terrível está lá fora, minha boa gente. Esta noite, vai cair uma geada de caixão à cova! — afirmava o António, e o doutor Henrique secundava-o com um meneio de cabeça:

— Podem crer. Isto está bravo! É tempo de curar o fumeiro e os presuntos na salgadeira.

Que beleza observar o lume a arder — forte e viçoso —, e o melodioso crepitar da lenha seca, que até embalaria o ser mais inquieto que por ali aparecesse. Não só o lume tinha o condão de transmitir estas maravilhas; o carinho dos anfitriões, era igualmente caloroso.

Figos, nozes, amêndoas, avelãs, uvas-passas e vinho foram servidos, enquanto Violeta terminava de preparar o jantar.

A cozinha era ampla e aconchegante. Tinha o fumeiro, separado por cada variedade, dependurado por cima da lareira, um escano com mesa basculante de cada lado e uma grande mesa de refeições mais afastada. Não sendo o sítio mais nobre da casa, era onde todos queriam estar e se sentiam bem.

Enquanto jantavam, conversa puxa conversa, foram parar à segunda metade do século XIX. Violeta estava tão feliz! Queria, desde que acordara, partilhar com os convivas uma história tocante. Até os olhos se lhe riam e o coração vibrava de emoção!

— Se soubessem a história da minha bisavó Isabel?! Ah! Que mulher destemida!

— Tal e qual tu. — rematava o marido.

— Conte, Violeta, conte. — insistiam as visitas.

— Então cá vai. Isto passou-se com a minha bisavó Isabel. Para vocês se situarem, foi entre 1870 e 1880. A minha bisavó era uma rapariga bonita e desembaraçada. Certo rapaz cá da terra, pobre, encantou-se por ela. No estio do verão, passando ele pela azenha, meteu conversa. Vendo que tudo corria de feição, encheu-se de coragem e pediu-a em namoro. Isabel, não desgostando do moço, respondeu-lhe que ia pedir autorização aos pais. Dali a dias, voltaram a encontrar-se e a resposta foi um não pesaroso. Os pais não queriam um rapaz tão pobre para a filha — eram abastados! Possuíam cinco azenhas, propriedades agrícolas, juntas de bois, cavalos e uma enorme barca de travessia. Na aldeia, não havia uma ponte para passarem os almocreves, que efetuavam a ligação comercial entre a Terra Quente e Terra Fria Transmontana. Embora houvesse uma ponte romana a alguns quilómetros, esta passagem encurtava a distância, e era mais segura. Na época, havia salteadores. — e deitando um olho para os pratos dos convidados, disse:

— Sirvam-se das travessas. Olha agora a fazerem cerimónias! É como se estivessem na vossa casa. Há mais comida no pote. Alexandre: a caneca está vazia. Põe mais vinho do garrafão. Querem lá ver que esta gente ainda vai dizer que nem pão lhe demos à ceia?!

— Violeta! O enchido que mais aprecio é o chouriço azedo. Este está mesmo como eu gosto. Foi a Violeta que fez o fumeiro? — indagava o doutor Henrique.

— Então quem havia de ser?! O meu homem? — desatou tudo a rir porque sabiam que o Alexandre nem um ovo sabia estrelar. Era um homem cheio de predicados, mas o fogão não o atraia. Fazia questão de preparar o pequeno-almoço - isso, sim, era com ele.

Enquanto riam, Alexandre ajeitava o lume e colocava mais uns toros a arder em cima do trasfogueiro — havia que manter as pessoas quentes. Devido ao calor da lareira, por vezes, caia um pingo de azeite do fumeiro. Não era caso para vir mal algum ao mundo. Manchava a roupa!

— Certo dia, bateram à porta uns almocreves, a meio da manhã, pedindo que lhes desse a barca, ou seja, queriam fazer a travessia do rio. A barca era de dimensões consideráveis. Acomodava homens, animais e respetiva carga. Comportava até carros de bois, vejam bem!

— Violeta, a sua bisavó era rapariga para tal ofício? 

— A minha bisavó, doutor Henrique, era uma rapariga destemida. As moças de agora, parecem frangas de aviário! Qualquer contrariedade as atrapalha, até parece que lhes foge o chão! 

— Lá isso é verdade. Esta malta nova não está preparada para a vida. Nós é que temos a culpa. Fazemos tudo por eles e nem os deixamos cair. — rematava o António.

— Então querem saber o que aconteceu naquele dia?

— Conte, conte Violeta.

— O rio ia bravo, uma correnteza impressionante de arrepiar até o mais valente das redondezas, as águas escuras, barrentas e um caudal... Os almocreves insistiam muito que queriam efetuar a travessia. Nem mediam o perigo. A minha bisavó, bem sabia que a empreitada era muito perigosa, mas tomada pelo impulso imanente da situação e da juventude, acudiu ao apelo. Meteram-se todos na barca: almocreves, animais de carga e os odres cheios de azeite novo.

— Desculpe a pergunta Violeta: o que é um odre? 

— Ora bem, António: é uma espécie de saco de grandes dimensões, elaborado em pele curtida, geralmente de cabra, para levar líquidos (vinho, azeite, etc.). Nunca observou os agricultores e os caçadores com uma pequena bota de vinho a tiracolo? Também são confecionadas em pele. 

— Não sabia de todo. Continue, Violeta. A história é muito interessante.

— Chegados a meio, formou-se uma tal correnteza que o vareiro partiu ao meio com toda a pressão. A seguir, a barca virou-se e depois saltou o açude.

— Meu Deus, que grande desgraça!

— As águas — profundas e enregeladas —, com a correnteza que o rio levava, faziam temer um mau desfecho.

— Ai, a minha Nossa Senhora! Nem quero imaginar o que eles passaram. — atalhou o António.

— A minha bisavó gritava, tanto e tanto por socorro — à medida que se afastava —, que o rapaz que a pedira em namoro, escutou. Cuidava de uma olga ali perto. Olhem, nem pensou duas vezes: atirou-se ao rio e, a muito custo, salvou-a. Sei que os odres foram parar a uma azenha, uns quilómetros mais abaixo.

— E o resto das pessoas e dos animais, o que lhes aconteceu? — o doutor Henrique, sempre afoito em querer saber de maleitas e acidentes.

— Julgo que se salvaram. Pelo menos não me contaram que alguém tivesse morrido.

— E a sua bisavó, ficou mal? Teve ferimentos graves? — atalhava o António.

— A minha bisavó não ganhou para o susto, coitada! Engoliu muita água e ficou enregelada como um bloco de gelo. Fora isso, não teve mais nada.

— Caramba! Que susto! Estou a imaginar a situação. Ai, se fosse comigo — dizia o doutor Henrique —, acredito que, durante muito tempo, não me aproximaria do rio. A sua bisavó devia ser mesmo valente.

— Tanto quanto me chegou ao conhecimento, era uma mulher rija e valente, sim.

— E a seguir, Violeta? Então o rapaz salvou-a, era apaixonado por ela, pediu-a em namoro…o que sucedeu? — questionava o doutor Henrique, muito entusiasmado com a história.

— Passaram-se alguns meses, e o rapaz voltou a abordar a minha bisavó, dizendo-lhe que nutria um amor incondicional por ela.

— E ela?

— Ela, António, foi de novo falar com os pais. Eles não viam com bons olhos o namoro, mas como a filha insistia e argumentava que lhe devia a vida, não tiveram outro remédio senão concordar.

— E depois?

— Depois, doutor Henrique, a minha bisavó falou com o Paulo, era esse o nome do rapaz, dizendo aceitar o seu pedido de namoro.

— E casaram, foi isso?

— Sim, casaram, uns tempos depois.

— Estou emocionado! — dizia o António — Desculpem. Sou um romântico incorrigível. Até me vieram as lágrimas.

— Mas a história não termina aqui!

— Conte lá, conte!

— O meu bisavô, sempre trabalhou no campo, de sol a sol, para que nada faltasse à sua amada, Isabel. Chegava a casa, completamente derreado e, ainda assim, quando se deitava, fazia questão de colocar o braço por baixo do pescoço da minha bisavó, para que servisse de travesseiro à sua amada. Tratou-a sempre com tanto amor e carinho, que ela dizia “Se houver um queijo no céu, para a mulher que não se arrependeu de ter casado, esse queijo será meu.”.

— Oh, que história encantadora! Dava enredo para um bom filme. — António estava definitivamente envolto numa nuvem imaginária, vendo-se nas cenas do filme.

— Esta história, foi contada de geração em geração, até chegar a mim.

— Afortunada a família que tem uma história tão linda para contar aos descendentes. Parabéns, Violeta! Você é parecida com a sua bisavó. — dizia o doutor Henrique.

— Violeta: que caixinha de boas surpresas! De cada vez que aqui venho, levo a alma cheia de alegria. Não só pelos manjares que nos serve, mas, também, pela riqueza de pessoa que é. Alexandre não me leve a mal! O meu amigo soube escolher a esposa e mãe dos seus filhos. — afirmava perentoriamente António.

— Não me deixem encabulada, por favor. Alexandre traz a sobremesa que está em cima da bancada e liga a máquina do café, para aquecer. Eu levanto os pratos.

— Que arroz-doce tão cremoso e saboroso, Violeta! Lembra-me o da minha querida mãe. — elogiava o incorrigível doutor Henrique, que se perdia por uma boa sobremesa.

Violeta sentia-se envaidecida com o desfiar de elogios. Eram bem-merecidos.

— Alexandre serve a nossa aguardente. Bem sabes que, com o café… É mentira, caros amigos?

— A Violeta é mesmo especial. Até se lembrou desse pormenor, vê só Henrique! Uma aguardente como a vossa, não se encontra nas redondezas. Por cima do café, assenta que nem uma luva. — António, um cavalheiro entre cavalheiros, sabia apreciar os dons da Violeta, e não se coibia em elogiá-la.

Alexandre e Violeta, exemplo de um casal feliz, sabiam receber os convidados. Transmitiam felicidade e harmonia por todos os poros. Acolhiam os convidados com imenso calor humano. Tinham a mestria de fazer com que as pessoas se sentissem em casa, na sua própria casa. Além do que descrevi, há ainda mais um detalhe: a simplicidade e a autenticidade, deste casal, eram tocantes.

 

# Este conto é uma obra de ficção assente na história real do naufrágio. Foi sua bisneta, Maria Isabel Morais, que ma contou. Passou-se na pacata aldeia de Mosteiró, banhada a seus pés pelo rio Tuela. A localidade pertence à freguesia de Torre de Dona Chama, concelho de Mirandela, distrito de Bragança, Portugal. #

 

Conto:  © Teresa do Amparo Ferreira, 11-01-2022

 

Aguarelas:  © Francisco António Amaral 

Grafite:  © Amélia Sousa  (barca com o vareiro)

Foto 1:  Maria Isabel Morais (bisneta) e o primo António.

Foto 2: Pedra com o orifício onde prendiam a barca.

Foto 3 e seguintes:  Rio Tuela banhando a aldeia de Mosteiró.

 

 


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