Chrys Chrystello

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É natal enquanto eu me recordar

Crónica 425 é natal enquanto eu me recordar

Em 1954 em nossa casa havia um galinheiro ao fundo do quintal com galinhas, que além de porem ovos, serviam para a alimentação durante o ano, mais um galo e o inevitável peru pelo Natal, sem eu nunca ter percebido o fim que os animais tinham, intimamente relacionado com o que me punham na mesa. No Natal aparecia o dito peru que tivera a malfadada sorte (?) de estar na engorda antes de ser degolado. Uma vez, um deles andou pela cozinha sem cabeça, aos saltos, para grande gáudio nosso e espanto da empregada que se calhar bebeu parte do brandi que era destinado ao peru… como era seu apanágio.

Outra recordação duradoura nessa década de 1950, é a dos saltimbancos que apareciam, uma ou outra vez por ano, na época do natal, para fazerem as suas acrobacias na rua em troco duns tostões. Eram em geral famélicos e escanzelados e divertiam-nos com as suas habilidades. Iam desde os palhaços a um outro a vomitar fogo, a outros marchando em cima dumas “andas” que chegavam ao primeiro andar onde eu os observava, e outros números que a memória deixou escapar. Nunca excediam uma meia dúzia de artistas que assim ganhavam a vida: o que mais me espantava é que houvesse já mulheres naquele meio, numa era em que estavam quase totalmente apagadas da sociedade caseira que lhes era imposta.

Nesse tempo, recebíamos brinquedos no Natal ou no aniversário e não sempre que íamos ao supermercado... as prendas  eram trazidas pelo menino Jesus e ora já nem sequer vêm de rena com o pai natal. Hoje ninguém se contenta com umas camisolas, camisas, meias ou algo assim, querem todos o último modelo de telemóvel ou PlayStation.

O Natal das recordações de infância é diferente dos atuais e por mais voltas que dê nunca mais será mágico como dantes, era a festa dos bolos, doces minhotos e transmontanos (aletria, sopa dourada, filhós, formigos), do execrável polvo acompanhado de arroz e do segundo prato de bacalhau com todos, cozido, na noite de consoada, e seus típicos vegetais (pelo menos dois ou três tipos de couves) e batatas cozidas com cenoura, cebola e ovo.

Era o tempo dos presentes no sapatinho, um presépio com musgo autêntico (agora é proibido apanhar, dá direito a multa e tudo), um pinheiro que se ia buscar nem eu sei onde, mas que era autêntico (ainda não havia movimentos ecologistas na época) e que me lembre, pelo menos uma vez, veio de ao pé de Santo Tirso (Negrelos). As velas eram verdadeiras e as bolas da árvore de Natal eram poucas e caras.

Era a festa do nascimento o Menino Jesus, Glória a Deus nas Alturas e Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade. Era também a festa dos pobres pois vivia-se na era da caridadezinha cristã que o Estado Novo incentivava. Eles até nem faziam grande festa, mas os ricos e os remediados, como nós, dedicavam alguns minutos do seu precioso tempo a pensar neles e a dar-lhes alguma atenção, nuns mimos que a criada (ainda se não chamavam empregadas domésticas nem técnicas de apoio domiciliário ou quejandos, na época) ia entregar com uns tostões mais do que era habitual. Lembro que devia haver muitos pobres pois era um constante rodopio de gente a bater, normalmente pela hora do jantar, “desejando a Bossência e excentíssima família Boas Festas e um Próspero Ano Novo”.

Havia muitos com uns cartões de Natal impressos propositadamente para a ocasião que depois se juntavam num monte para vermos a quem se tinha ajudado: o carteiro, os homens do lixo (então chamados lixeiros), os cantoneiros, o guarda-noturno, os homens da água (eram os SMAS nessa época), da eletricidade pré-EDP, dos jardineiros da Câmara, dos bombeiros, dos limpa-chaminés, dos varredores de rua e o mais que me não lembro. Esses desprotegidos ainda não tinham subsídio de Natal e dependiam da bondade alheia para se darem ao luxo de celebrar o Santo Natal.

Havia também os outros, os “habitués”, os pobres de pedir, regulares visitantes da nossa aldraba de porta, que nessa época tinham também um “mimo” extra, fosse uma “rabanada” ou uma sopa quentinha. Nessa época abria-se sempre a porta quando alguém tocava pois não se tinham inventado os olhos mágicos que deixam de fora quem se não quer receber. Os “nossos” pobres tinham dias certos para virem receber a esmola certa como quem vai receber o seu soldo ao fim duma semana de labuta. Era importante para nós crianças vermos que havia desprotegidos, aqueles a quem a sorte não tocou, e para quem estranhamente ou, melhor dizendo, infantilmente nos interrogávamos porque é que a sorte lhes era madrasta. Eram todos servilmente submissos, educados e atenciosos, sempre de chapéu na mão (aqueles que ainda o usavam) a pedir “por alminha de quem lá tem, meu rico menino” ou qualquer outra frase do género, que sempre me impressionava. Sentia-me feliz quando me era permitido entregar essa oferenda minúscula dumas moedas que faziam sorrir essa velha cara, a retirar-se às arrecuas, de chapéu na mão, dizendo “Bem-haja, muita saudinha para si e para os seus”. As criadas impantes na sua superioridade de assalariadas a viverem sob um teto confortável desprezavam estas criaturas e agora sei que era por temor de um dia se poderem inverter os papéis.

Hoje, de uma forma geral há uma acentuada perda de valores e dos laços familiares, das conversas, das trocas de experiências entre gerações quando se reunia a família alargada, e convivia nas festas de natal. Os pais dificilmente têm tempo ou espaço para dialogar com os filhos e nos casos mais felizes apenas encontram os netos mais novos como interlocutores. Os jovens deixam de conhecer a família para além da imediata e mais chegada, perde-se o contacto com tios, tios-avós, primos direitos, segundos e terceiros. Que a pressa do quotidiano obriga a serem parcos em palavras, gestos e emoções, com medo de que se não chegue a tempo a sítio nenhum e onde se fará sentir a solidão e a vacuidade da vida que a sociedade vem impondo nos últimos vinte ou trinta anos. Lembro-me da série Família Forsythe e creio que aquilo que se passou na mudança do séc. XIX para o XX está a suceder a um ritmo bem mais acelerado. Qualquer dia só nos conhecemos virtualmente através do Facebook ou qualquer outro instrumento virtual. Talvez seja melhor e assim haja menos intrigas e desavenças familiares. É mais difícil brigar com estranhos, em especial se não soubermos que são da mesma família.

No meio deste deserto com vozes onde sempre vivi, germinam algumas flores silvestres e tímidas, carentes de água, mas resilientes, habito a suave utopia da poesia que serve de desculpa para justificar a existência, e tu, que me estás a ler se não consegues vislumbrar a utopia e esperança jamais terás natal. Não invejo os teus bens e conquistas materiais, legítima ou ilegitimamente conquistados, com que te ufanas na varanda dos dias, não cobiço nem desejo o paradigma de vida que escolheste, fogos-fátuos de vaidade, ostentação e prosápia com que te vestes. Persistirei a viver neste bucolismo açoriano que me cativou com as suas letras e escritores e escritoras pois sei que ainda é legítimo continuar a sonhar e a viver utopias enquanto o mundo, lá fora, se desmorona como os icebergues.

As pessoas nem sequer têm tempo para pararem, e pensarem, onde estão, donde vieram e NÃO PARA ONDE VÃO, mas PARA ONDE QUEREM IR. Claro que há as mensalidades por pagar, os estudos dos filhos, e outras preocupações que quando o cansaço se instala e já deitadas mal lhes sobra energia para conversarem. É isto o ideal de vida que nos reservam os tempos atuais e – será pior daqui por diante – e não gosto, nem foi para isto que lutei na juventude em inúmeras discussões filosóficas em tertúlias de amigos que se prolongavam pela noite dentro. Ainda mantenho sonhos e quero realizá-los partilhados, sem ser com uma série televisiva que nos anestesia e deixa num torpor onde não resta lugar para a inteligência ou para o pensamento crítico.

 Isto tudo vem à lembrança porque – tal como em anos anteriores - no primeiro Natal nos Açores, em 2005, chamei o filho mais novo e disse-lhe para fazer uma seleção dos jogos e brinquedos menos utilizados ou que já perderam a atração juvenil, para os dar a outros mais necessitados. Juntou-se tudo num saco, e o mais novo acabou por decidir oferecer a um dos amigos mais necessitados (são dez filhos, espalhados por várias casas, dado que os pais não os podem ter a todos numa só casa). Mas o que eu não esqueço nesse ano, é o olhar dum desses miúdos mais desfavorecidos ao entrar no café da esquina, já no dia 25, com uma guitarra de plástico, daquelas que custa para aí um euro ou dois nas lojas dos chineses, com o ar de quem tinha acabado de adquirir o último modelo dum Porsche Carrera. Ele era o miúdo mais feliz do mundo, mais orgulhoso e rico de toda a aldeia. Queria mostrar a guitarra e a sua felicidade a todos, ainda bem que para ele o Natal valeu a pena.  

Mas onde se estava mesmo bem era aqui

Chrys Chrystello, [email protected]

Jornalista, Membro Honorário Vitalício nº 297713

[Australian Journalists' Association - MEEA]

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