Com esta reflexão, tendo por causa próxima o que aconteceu na semana passada em Cova da Moura, pretendo chamar a atenção para a perda progressiva da autoridade da Sociedade face à crescente onda de desintegração social, expressa na criminalidade, delinquência e «ghettização» de alguns grupos sociais, entre eles os do crime organizado, os dos traficantes de drogas, os dos consumidores de drogas, os das minorias étnicas não integradas socialmente, os dos paraísos fiscais e os dos marginalizados pela própria Sociedade. A ideia que aqui defendo é a de que se torna necessária a afirmação de valores comuns que unam as diferentes comunidades, assim como a legitimação do aparelho repressivo democrático que todas as sociedades livres têm de ter para garantirem a sua sobrevivência e unidade.
Os recentes acontecimentos de Cova da Moura motivaram-me a escrever esta reflexão, já que, de certos pontos de vista autoproclamados vanguardistas da modernização social, aqueles acontecimentos teriam sido provocados pelas «Forças da Ordem», ou seja, pela Polícia interveniente. Vale isto por dizer que, face aos factos verificados, tais acontecimentos não teriam tido lugar se não fosse a actuação da Polícia. Ou seja, que a Polícia não devia ter actuado, que não se devia ter defendido, que devia ter deixado vandalizar mais instalações, e, em última análise, que se devia ter deixado matar.
Para os tais autoproclamados vanguardistas – é bom de ver — a Sociedade e o Estado por aquela instituído não deviam ter nem Polícia, nem Guarda Nacional Republicana e, já agora, nem Polícia Judiciária, nem Guarda Fiscal (integrada na GNR), nem Fiscalização de Actividades Económicas, nem Tribunais, nem Forças Armadas.
Ignorando que a salvaguarda dos interesses fundamentais dos cidadãos, integrados numa qualquer colectividade social, exige o recurso ao poder coercivo, trocam a garantia de uma Sociedade segura pela concessão de direitos a uma parte dessa colectividade, sem cuidar de que tais direitos implicarão também deveres em relação ao todo social.
Na literatura jurídica e sociológica, os direitos sempre foram a contrapartida de deveres. Quer isto dizer que uma etnia ou um grupo social quaisquer só têm direitos quando respeitam e cumprem os deveres que o todo colectivo entende como necessários para assegurar a sua própria existência, segurança e paz.
Ao tratar-se daquela forma uma intervenção correcta da Polícia, prestou-se um mau serviço à colectividade, pondo em causa a seriedade e honestidade da própria organização policial e, sobretudo, pondo em causa a ordem social, já que tal significou exigir que o Estado, representante da Colectividade organizada, se demitisse das suas funções de repressão de actos de vandalismo e de pura manifestação de repulsa pela vida em sociedade organizada.
Se se permitir que individualismos pessoais, de grupo ou de etnia, e que actos desconformes com os critérios da ordem social se desencadeiem sem que a colectividade tenha meios para os reprimir, os cidadãos deixarão de se sentir seguros, acabando por não se sentirem membros da própria colectividade social.
Portugal atravessa, pois, um momento difícil em que o Estado, enquanto colectividade social organizada e representante da comunidade de cidadãos, vem sendo incapaz de impor os princípios e valores da comunidade, da ordem e da paz social, arrastado pela contestação de grupos de marginalidade (provocada ou voluntária) à actuação dos elementos das forças repressivas do Estado e pela interpretação errada que lhe é dada por muitos presumidos intelectuais.
Ora, como também se sabe, o Estado, ou é forte, ou não é Estado. O Estado, representante e garantia do funcionamento da colectividade social, deve fazer tudo para que os princípios em que assenta a sua acção e a da Sociedade sejam princípios incontestáveis, embora actualizáveis e reformuláveis, em consequência do diálogo com os próprios movimentos sociais.
Com efeito, se não partilharmos os mesmos valores fundamentais, se não existirem elementos de unidade e de coesão, como poderemos viver em conjunto e garantir a paz?
Antes do Estado Liberal (nascido das Revoluções Americana, de 1779, e Francesa, de 1789), a sociedade ocidental assentou tais valores e unidade na verdade revelada do cristianismo, construindo sobre ela a sua comunidade e o seu governo. O Estado Liberal acrescentou à verdade revelada do Cristianismo a Lei, que passou a constituir o quadro organizador das relações sociais e os princípios de interacção entre os membros da colectividade, ao mesmo tempo que laicizava o Estado e fazia diminuir a influência do Cristianismo.
O Estado Democrático do Século XX, mas, sobretudo, da segunda metade deste século, manteve os princípios das duas formas de Estados anteriores e acrescentou-lhes o respeito pelas diferenças pelas minorias, tivessem elas a origem que tivessem. Lentamente, por perversão, o respeito pelas minorias prevaleceu sobre o respeito da colectividade. E, quer o Estado, quer a Colectividade, começaram a ficar à deriva. Tanto mais que a verdade do Cristianismo enquanto deixou cimento da Lei e das relações sociais, foi ainda mais posta em causa. Para onde caminhamos, afinal, se nada nos une e tudo nos separa?
* Professor da Escola Superior do IPB