Ana Soares

Ana Soares

Caminho traçado para um desastre eminente

Não sou, nem nunca fui, adepta do discurso “Portugal é só Lisboa e o resto é paisagem”, motivo pelo qual fico particularmente revoltada quando sinto que alguma medida importante e relevante para o nosso país é tomada com base neste pressuposto.

Foram ontem anunciadas pelo Conselho de Ministros as medidas previstas para a nova entrada de Portugal continental, após 15 de Setembro, na situação de contingência. Antes de mais, impõe-se uma declaração de interesses e clarificação de posição. Não sou dos arautos de uma alegada conspiração internacional, que veem na relevância dada pelos governos um pouco por todo o mundo uma forma de controlo da população. Também não sou “apavarocionista”, no sentido de achar que temos que olhar com medo e desconfiança para tudo e para todos, fechar-nos em casa e entrar num pânico tal que até da nossa sombra desconfiamos. Tento olhar para os números do covid-19 com a segurança e relatividade que só é possível indo directamente a várias fontes, lendo em órgãos de comunicação de vários países e com directrizes de edição diferenciadas e tentando, claro, falar com pessoas da área da saúde pública nas quais acredito e cujo conhecimento valorizo. Esta é uma realidade que ninguém pediu mas que já não está à nossa porta, já entrou para as nossas casas, pelo que me parece essencial vivê-la com base no princípio mais elementar da minha vida: a importância da (de cada uma, sublinhe-se) vida.

É inegável a evolução consolidada de número de contágios no nosso país, como, aliás, tem acontecido noutros países europeus. Felizmente, tem sido particularmente relevante em faixas etárias onde o risco de vida, por princípio, é menor, mas nunca nos devemos esquecer do papel de cada um de nós enquanto agente de saúde pública e enquanto eventual propagador da doença para terceiros, nomeadamente pessoas de risco (de todas as idades). Convém ainda sublinhar, como se tem visto em casos particularmente trágicos (e isto são factos, não uma opinião) que há mortes de pessoas não indicadas como de risco e de faixas etárias jovens, pelo que, para mim e isto sim é minha opinião, cada vida deve ser protegida tanto quanto possível, seja por covid-19, AVC ou qualquer outra doença.

Assim, foi com particular choque que tenho assistido à relevância dada aos casos nas zonas metropolitanas de Lisboa e Porto, que se traduziram em medidas díspares anunciadas ontem, em detrimento do resto do país. Claro que, reconhecendo que o país não pode “fechar de novo”, cada vez mais se exigem medidas localizadas e específicas, mas é exactamente por isso que as medidas específicas devem ser aplicadas localmente mas sem prejuízo de medidas que, não sendo economicamente penalizadoras, podem evitar uma situação de larga escala de contágio em que não reste outra alternativa que tomar medidas que sucumbam ainda mais a nossa já frágil economia. Exemplo prático: faz todo o sentido que se tomem medidas de horário desfasado particulares para Lisboa e Porto, uma vez que é nestas áreas metropolitanas que os transportes públicos representam particular perigo de contágio (quanto mais não seja, porque em muitas outras zonas do país são praticamente inexistentes…). O mesmo já não sucede quanto ao teletrabalho quando estão em causa tarefas totalmente compatíveis com o mesmo, sabendo-se até que em alguns distritos – como no nosso – a percentagem de mortalidade por infectado é maior que a média nacional (o que é facilmente explicado pelo envelhecimento da população do Interior). Isto para não falar nas escolas do ensino básico, secundário e superior, onde ninguém se sente confortável com a inexistência de regras praticáveis e o silêncio insurdecedor sobre as questões que realmente importam…

Espero sinceramente que tenha havido um “lapso” na apresentação de medidas para a situação de contingência que se iniciará em breve e que quando for publicado o decreto-lei aprovado ontem na generalidade que “estabelece um regime excecional e transitório de reorganização do trabalho, com vista à minimização de riscos de transmissão da COVID-19 no âmbito das relações laborais” não se esqueçam do restante país. Porque regime misto entre trabalho presencial e teletrabalho ou o teletrabalho é necessário em todo o país, sobretudo onde existe mais contacto entre a população activa e aqueles que, por força da idade, já não o são, como acontece na nossa região e em tantas outras.

Gostaria ainda que fosse dado o mesmo eco pela generalidade da comunicação social aos casos em todo o país. Porque se fala tanto se salas/turmas em quarentena em escolas privadas de Lisboa e Porto e não no que acontece no resto do País? Porventura não aconteceu já o mesmo na nossa cidade e em outros locais? E não há instituições de solidariedade com o mesmo problema? Não contribuirá também esta visão centralizada e centralizadora (tantas vezes por quem se diz arauto da descentralização) para estas medidas pouco sensatas, como se a vida dos que vivem no resto do país valessem menos que a das áreas metropolitanas? Até porque, do meu ponto de vista, falar destes casos não é – na maioria das vezes – colocar em causa o empenho das Instituições, pelo contrário, pois se não fosse o seu profissionalismo os números podiam ser bem piores (falo em particular da situação que conheço mais de perto e que também nos tocou directamente).

Conseguimos, na “primeira vaga” ser um país de referência pelos números atingidos os quais, estou certa, se deveram muito às fortes medidas tempestivamente tomadas pelo Governo. Se todos sabemos que não podemos “fechar” novamente o país pelo daí sairia, mas certos também que é imperativo resolver e controlar este problema de saúde pública, façamo-lo de modo estruturado e assertivo, mas recordando que cada vida vale por si, seja qual for a sua profissão ou viva a pessoa em Rio de Onor ou trabalhe no Terreiro do Paço. Caso contrário, numa época em que tanto se fala de “ismos”, estaremos perante uma nova e perversa discriminação, esta aos olhos de todos mas que não enche manchetes de jornais? Talvez valha a pena pensar nisto…


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