Assim mesmo! Já se sabia que era um jogo, importado de outros países onde a discussão da coisa pública tem normalmente outro nível e outra tradição; e onde é possível encontrar figuras consensuais apesar das divergências políticas; e onde é possível reconhecer qualidades de grande patriota a um adversário político. Em Portugal, nem depois de morto um político pode ser consensual, a não ser nos escassos minutos do funeral a que assistem os amigos - e adversários por dever de ofício.
Devia, por isso, esperar-se que a escolha dos Grandes Portugueses viria a dar o que se vê: uma transposição para a televisão dos insultos e panegíricos mais radicais que a nossa mediocridade política cultiva. E em que Salazar e Cunhal são apenas o pretexto do enxovalho soez, do comentário torpe ou do revanchismo primário. Para quem organizou o concurso, é bem feito, porque não soube resistir ao apelo duma receita que anunciava resultados seguros e audiências quanto baste. Nem lhes passou pela cabeça que a construção duma memória valorativa das figuras nacionais necessita do pó do tempo. Enquanto houver vivos que se lembrem, a memória dessas figuras virá carregada das paixões mais rasteiras e fará desaguar nas votações os recalcamentos individuais ou colectivos que sustentam posições de adesão ou de repúdio, de amor ou de ódio. Só quando for possível fazer história séria, sem a luz da actualidade a incidir sobre a obra das personagens, é que será possível fazer uma distinção minimamente séria de quem reuniu em si um conjunto de virtudes pátrias que, por serem um acervo do melhor das virtudes colectivas, justificam o reconhecimento como Grande Português.
Será, então possível, aqui e agora, encontrar um grande português consensual? E que tipo de figura poderá encarnar essa extrema exigência de ser o maior português? Um poeta, um guerreiro, um político, um benemérito, um santo, um artista, um bombeiro, um agricultor, um atleta, um banqueiro? Ou simplesmente um vencedor do euromilhões ou duma prova olímpica ou um autarca que oferece um frigorífico a cada munícipe?
Num povo com mais de oito séculos de existência, as qualidades e os defeitos hão-de estar ligados ao sucesso e insucesso do país que construiu, à capacidade de gerar uma consciência nacional sólida que leve cada um a sentir o país como seu, à imagem que desse percurso histórico se projecta para o resto da humanidade. E se é verdade que algumas figuras históricas merecem um lugar de honra nessa galeria de arautos do país, é necessário não confundir a nuvem com Juno. Muitas dessas figuras ergueram-se da mediania colectiva não por virtude da pátria mas apesar dela, muitas vezes desprezadas por ela. Como escreveu Camões /”Não mais...que a lira tenho destemperada e a voz enrouquecida/ E não do canto, mas de ver que venho/Cantar a gente surda e endurecida/O fervor com que mais se acende o engenho/não o dá a Pátria, não, que está metida/no gosto pela cobiça...”/.
Por isso, se não podemos reivindicar como virtude colectiva aquilo que apenas uns poucos empreenderam, é justo, apesar disso, que esses poucos sejam apontados como portugueses exemplares que, por mérito próprio, se libertaram da lei da morte. Serão esses os Grandes Portugueses, porque maiores e melhores que os outros, porque acima dos outros (e eventualmente contra eles).
Outro seria o raciocínio se pretendêssemos escolher alguém que reunisse em si as virtudes e defeitos médios dos portugueses, ou seja, o português-tipo, pois, nesse caso, eu proporia o Zé portuga. E quem é o Zé portuga? É aquele português médio que aguenta há séculos às suas costas uma pequena elite de parasitas, que desbravou terras e plantou vinhas e pomares, que defendeu a terra e sustentou a família sem ajudas do Estado, que embarcou nas caravelas e desbravou os sertões e as savanas e se misturou com outros povos e criou oportunidades de vida noutros mundos, que sacudiu a canga de escravaturas diversas e foi ajudar a desenvolver outros povos por esse mundo fora, em suma, o Zé portuga é o Zé povinho do Bordalo, que faz revoluções suaves mas pisca o olho da matreirice e faz o manguito quando está farto, mas que, apesar disso, ainda é capaz de se sentir português e emocionar-se com o hino nacional ou com a bandeira duma selecção nacional de futebol.
Honra, portanto, aos Maiores (por mérito deles!). E viva, pois, o Zé portuga! (para resignação nossa).