Se os motociclistas são pessoas especiais, aqueles que professam a paixão pelas motos clássicas e antigas são realmente únicos. Não fraquejam perante as mais inclementes condições climatéricas, tão pouco desistem quando surgem problemas mecânicos.
E mais: andam sempre com um enorme sorriso no rosto! Mesmo perante chuva, saraiva, chuvinha, nevoeiro, aguaceiros ou granizo como o que caiu durante a ligação entre Chaves e Vila Nova de Famalicão, percurso da 2.ª etapa do 1.º Portugal de Lés-a-Lés Classic.
E são muitos os testemunhos entre aqueles que saíram do flaviense Jardim das Caldas desafiando as ameaças de mau tempo, seguindo pela M507 em direção à fronteira luso-espanhola, com passagem por Soutelinho da Raia e Mexide, antes da visita a Vilar de Perdizes. Sempre por deliciosas estradinhas de forte pendor mototurístico, chegou a caravana a uma terra de fé e de crendices, de feitiços e feiticeiros, rodeada de gravuras rupestres e símbolos pagãos que ajudaram a cimentar o reconhecimento na História da Medicina Popular. Em boa parte, graças ao Padre Fontes, que todos os anos atrai milhares de visitantes a esta aldeia, completamente deserta à hora da passagem dos madrugadores aventureiros
Daí a Montalegre é, normalmente, um saltinho, pela agradável M508 passando por Meixedo, mas, desta vez, a viagem demorou bastante mais. A ‘culpa’ foi do apaixonado colecionador José Costa que abriu as portas do seu Armazém de Memórias aos participantes na aventura mototurística da Federação de Motociclismo de Portugal. Com um acervo que “conta com mais de 600 motos e motorizadas, metade em fase de restauro, espalhadas por Barcelos, Paços de Ferreira, Marco de Canavezes e outros locais” este antigo empresário da construção civil coleciona veículos de duas e quatro rodas, mas também relógios de parede, rádios, telefones e porcelanas, há mais de 40 anos. “Criar um museu? Com tanta burocracia necessária é mais fácil e gratificante ter um espaço aberto para aqueles que realmente gostam do tema”. Pragmatismo de quem ganhou o vício “ao recomprar o Peugeot 403 do pai, o que tem maior valor sentimental, tendo depois comprado outros automóveis, como o Buick de 8 cilindros em linha, aquele que é o mais entusiasmante, em que, se pudesse, andaria todos os dias”.
Mas são as motos que despertam maiores paixões “tendo cerca de 300 modelos em exposição nos 1300 metros quadrados, que serão reposicionados quando terminar o patamar superior com mais 650 m2. Reconhecendo que “é muito difícil escolher a moto mais significativa entre tantos e tão bonitos modelos”, José Costa garante que “a coleção vai continuar a crescer, procurando sempre as mais raras que foram fabricadas em Portugal”.
Joias que se vão juntar à Motobecane de 1919, a mais antiga em exposição (curiosamente do mesmo ano do Ford T que está do outro lado do grande pavilhão), e que têm o futuro garantido. É que os dois filhos e os quatro netos gostam do Armazém de Memórias, conhecendo bem a história de alguns modelos raros como uma Famel Victoria ou a Aprilia que não é… italiana. Chama-se Luxe Modelo e foi montada em território nacional na década de 60 do século passado, destacando-se pelos dois pares de amortecedores na traseira e um relógio montado de série!
Surpresa enorme para muitos dos participantes no 1.º Portugal de Lés-a-Lés Classic como foi o caso de Francisco Sande e Castro, ex-pilotos de motos e automóveis, espantando porque nunca pensou que “houvesse tantas marcas portuguesas de motorizadas”. Lamentando ter de seguir viagem “sem poder desfrutar de tantas máquinas bonitas, curiosas e muito bem recuperadas”, voltou aos comandos da Yamaha Ténéré que comprou há 35 anos e sempre manteve, para cumprir a estreia no Lés-a-Lés. Mesmo se reconhece que evita andar em grupo, “encontrando maior prazer em viajar a solo”, tendo mesmo dado já a volta ao mundo.
Com alguma dificuldade em deixar o ‘Armazém’ de José Costa, lá seguiu a caravana com a ajuda do chamariz que é sempre o almoço, confecionado pela equipa da Comissão de Mototurismo da FMP e servido em Salto, já em terras de Basto. Para trás ficaram troços mais rápidos sempre com paisagens verdejantes das nacionais 308 e 103, entremeados pelas passagens surpreendentes em algumas estradas municipais, bordejando a albufeira do Alto Rabagão até ao almoço e depois continuando por um dos mais bonitos momentos do dia. Instantes em que nem a chuva intensa diluiu um sentimento único ao passar pelos centenários bosques de Torrinheiras, Travassô, Moinhos de Rei, Bucos e Rossas, terminando na mais larga, mas não menos espetacular N205. Mais momentos de intenso prazer mototurístico, por entre carvalhos e robles, numa estrada protegido por rails de madeira.
Estrada mais ‘macia’ para o sofrimento da BMW R26 (1959) de João Paulo Dias, com o quadro partido na véspera fixo por reparação de fortuna, com um sistema “feito a partir de peças metálicas existentes em qualquer casa de ferragens” e que surpreenderia qualquer engenheiro. No entanto, a boa disposição, do condutor e de todos os amigos do grupo, continuou intacta, tal como a de Vasco Barbosa que voltou a contar com o side-car da Vespa 150 Sprint V que tivera de desmontar na véspera com problemas mecânicos, fazendo o resto da etapa apenas em duas rodas.
Com voltas e voltinhas para fugir ao trânsito e locais menos interessante graças à forte pressão habitacional e industrial do Vale do Ave, chegavam os mototuristas, ainda molhados mas felizes, a Vila Nova de Famalicão. E enquanto o Moto Clube Escorpiões se preparava para receber os visitantes bem no centro da cidade e já com contributo do sol, ainda havia outra paragem antes do palanque final. A coleção privada de José Artur Campos Costa, vice-presidente da Federação de Motociclismo de Portugal e apaixonado pelas motos de competição.
Uma coleção começada pelo tio, António Augusto Carvalho nos anos 1950, “considerado o primeiro verdadeiro colecionador de automóveis em Portugal, e que não ligava assim tanto a motos, mas que acabou por ficar com algumas que eram oferecidas quando comprava alguns carros”. Assim teve início o espólio que Campos Costa “começou a aumentar depois de regressar da Alemanha, na década de ’80, juntando por exemplo a primeira moto grande pessoal, a Honda CB750 de 1970, curiosamente também a primeira CB Four a ser matriculada em Portugal”. Máquina que partilha o espaço com uma FN Four de 1910, com motor de quatro cilindros em linha, a Indian Hendee Special, de 1914, com bloco V2 de 1000 cc e muitas motos de corrida.
Algumas curiosidades dos tesouros desta verdadeira gruta de Ali Babá: A Suzuki XR34, pilotada no Mundial de 500 cc em 1980 por Graziano Rossi, que deu o nome ao filho Valentino; a Yamaha OW F2 com que Wayne Rainey foi Campeão do Mundo de 500 cc em 1982; a Honda Fireblade com que Michael Rutter ganhou o Grande Prémio de Macau em 2012; ou a Suzuki GSX-R 750R da equipa portuguesa Suzuki/Shell vencedora das 24 Horas de Spa-Francorchamps em 1999.
Frutos de uma paixão intensa, pelas motos clássicas e de competição, que quase deixou o coração de Campos Costa dividido. “Se não fosse esta visita dos participantes do Portugal de Lés-a-Lés Classic, estaria no Grande Prémio de França, com a exposição do Spirit of Speed. Mas é um gosto tão especial mostrar estes modelos a verdadeiros aficionados que nem sequer houve dúvida…”.
Os participantes agradeceram o cuidado e, já com sol na chegada, começaram a pensar na terceira e última etapa do evento que, no domingo, levará a caravana de V.N. Famalicão a Lamego, ponto final de uma aventura que vai deixar saudades.