Teresa A. Ferreira

Teresa A. Ferreira

Pastor, bruxo e doutor. Quem diria!

Crónica 5: Pastor, bruxo e doutor. Quem diria!

Toninho, jovem pastor em terras de Vale Maduro, lá para os lados de Alfândega, conduzia o rebanho de gado segundo a orientação das estrelas e a sua boa intuição para perceber as mudanças do tempo. Não conhecia uma letra. Sua família não o tinha mandado à escola. Cansado do pouco rendimento, do muito trabalho e das intempéries que tinha de suportar, resolveu mudar o rumo à vida.

De armas e bagagens, mudou-se para a aldeia de Franzelos, em Macedo, onde começou a dar corda aos seus impulsos premonitórios do tempo. Humildemente dá início às consultas, numa pequena casa de pedra, receitando chás às pessoas que o procuravam.

Com o decorrer do tempo, os chás tornaram-se coisa pouca para acalentar a muita clientela que se apresentava à porta. Vai até Castro de Dona, bem perto de Franzelos, com o intuito de comprar chás na farmácia. Conversa puxa conversa, vai perguntando ao Gropes, técnico de farmácia, o que se devia tomar ou aplicar para esta ou aquela dor ou achaque. Tudo guardava na memória.

As consultas foram melhorando, agora introduzindo medicina, mas isto ainda era coisa pouca para o Toninho que já se intitulava de “Doutor Toninho”.

À época, praticamente ninguém tinha automóvel. Os clientes chegavam-lhe em carro de praça, sendo que, também eles, na sua maioria, eram analfabetos. Restava então o chofer do carro de praça, chamado a escrever num papel os medicamentos receitados pelo Toninho. Era recomendado que aviassem a receita na farmácia de Castro de Dona.

Toninho não conhecendo uma letra, era inteligente e perspicaz.

Vê, nos choferes e na farmácia, aliados de peso. Os choferes passam a informantes, vindo todo o caminho em sub-reptícia conversa, tirando nabos do púcaro aos clientes. A farmácia passa a conselheira de maleitas e não se nega a aviar as receitas por ele ditadas. Resolve presentear os informantes, de forma generosa.

Mas havia que dar ainda mais credibilidade e espanto às consultas, isto é, agarrar os clientes pela fé indubitável.

Vendo que a medicina por cá tinha algumas lacunas, Toninho vai até Espanha consultar-se com bons médicos. Traz o receituário e novo palavreado em espanhol. As consultas tiveram, apenas, o propósito de lhe dar mais conhecimentos para bem lidar com as doenças que lhe apareciam no consultório.

Que espanto causava quando, durante a consulta, dizia que tinha encarnado em si um famoso médico Espanhol. Punha-se a balbuciar palavras em espanhol e os clientes rendiam-se a tamanha novidade

- Isto é coisa do outro mundo! Se o homem nem sabe ler, como é que pode falar estrangeiro? Isto é tudo verdade. Um médico estrangeiro meteu-se-lhe no corpo e botou-se a falar.

 A receita seguia com nomes de medicamentos espanhóis e os clientes tinham de ir à raia aviá-la.

Os delegados da propaganda médica, quando visitavam os médicos da zona, faziam questão de visitar o Toninho em Franzelos e ele aproveitava muito bem todo o conhecimento que dali provinha. Até dispunha de um symposium médico onde os taxistas iam confirmar o nome do medicamento que ele queria receitar.

Este homem, que de pastor se transformara em doutor de medicina, colhia louros e aplausos por todo o lado. Que homem tão sábio! Dizia o povo. Faziam fila na aldeia para serem consultados. Vinha gente de todos os lados à espera de um milagre.

Para dar credibilidade à consulta, lançava uns fumos e atirava uns nomes, partes da conversa que o taxista escutara e lhe transmitira, para dar um ar de adivinhação. A receita era ditada conforme a sua experiência ou, ausentando-se da sala, ia fazer um telefonema para a farmácia, aconselhando-se com o Gropes. 

Um dia apareceu-lhe na consulta uma jovem mulher, tinha enviuvado há cerca de um ano, com uns achaques esquisitos. As queixas já tinham sido analisadas por muitos doutores de medicina mas nada de aventarem qual seria o mal. Esta mulher tinha escutado a alguém que em Franzelos havia um bruxo entendido em doenças. Chamou um carro de praça e meteu-se a caminho.

O taxista, ao saber qual era o destino da viagem, fez conversa discreta. A determinada altura, tudo fluía em amena cavaqueira para felicidade do taxista. Assim que chegaram a Franzelos, o taxista muito solicito, informou a viúva de que ia dar o seu nome para ser atendida no consultório e tratou de, sorrateiramente, informar o doutor Toninho de tudo quanto colheu na viagem.

É chegada a vez da viúva. Entrou numa sala bastante escura e sentou-se à frente de uma mesa. Viu uns fumos brancos a esvoaçar! E ela, num nervoso miudinho que lhe percorria o corpo todo, encolhia-se como se tivesse visto bicho feio. O doutor Toninho, sabidão, começou a falar pausadamente, dizendo para ficar tranquila, não ter medo, que ali estava em paz, que sabia que ela estava muito mal e que já tinha sido despedida dos médicos. Os olhos da viúva arregalaram-se de espanto e disse:

- É verdade, sim senhor! Estou muito mal e ninguém me cura.     

- Então, veio ao sítio certo, mulher! Vou trabalhar com os meus mestres para encontrar a cura pró seu mal. Sabe, os médicos, doutores dos hospitais e consultórios, se ouvissem com atenção os doentes, melhor seria.

- Então o que é que eu tenho, senhor doutor Toninho?

- O seu caso não é nada fácil, já lhe digo, mas como tenho muito bons médicos que encarnaram em mim, vou-me recolher um pouco em silêncio para escutar o que têm para me aconselhar. Dê-me uns instantes.

E tratou de conferenciar em privado com o taxista. O caso não lhe parecia ser mal do corpo. Voltou à sala onde continuou com perguntas:

- Você está viúva há cerda de um ano, não é verdade?

- É, sim, senhor.

- Não mora ao pé de si um homem… deixe cá escutar… os espíritos estão a falar... que confusão! Querem falar todos ao mesmo tempo e baralham-me…

A viúva nem o deixou terminar.  

- É o Joaquim, senhor doutor, é meu vizinho.

- E esse homem deita-lhe uns certos olhares quando passa…

- É verdade, senhor doutor. Fico toda arrepiadinha, numa aflição que nem sei explicar direito! Depois, sobem-me uns calores por mim acima até ao peito. Só alivio quando me banho!

- E você, já pensou em falar ao Joaquim?

- Eu, senhor doutor!? Eu sou uma mulher séria e de respeito. Deus me livre e guarde! Não senhor. Olha-me esta agora! Isso era dar corda ao povo pra soltar as más-línguas.

- E se ele lhe fizesse conversa?

A viúva estava espavorida; de mil cores se tingiam as faces; o suor escorria-lhe pelo rosto; as mãos transpiravam e escaldavam; passava o lenço de mãos na testa e escutava atentamente.

- O meu conselho para o seu caso, como lhe disse é um caso muito difícil, não vai lá com medicina.

- Socorra-me, senhor doutor, já fui despedida de todos os médicos?

- Vou-lhe receitar uns chás muito bons. Vão ajudá-la a acalmar essa aflição.

- E que mais, senhor doutor?

- E que mais? Diz você muito bem! Deixe-se de vergonhas e chame o Joaquim para merendar lá em casa.

- Ai, meu Santo Deus! E o povo? Vão logo falar de mim!

- Deixe o povo falar e resolva-se com o Joaquim.

- É mesmo certo, senhor doutor?

- É como lhe digo. Perca a vergonha e converse com o homem. Por certo ele também lhe tem afeição. Entendam-se e tudo isso lhe passa num instante. O que você tem são nervos.

- Ai, minha Nossa Senhora da Agonia! Este homem é mesmo sábio! Deus o ajude e ilumine, senhor doutor.

- Leve os chás e faça como combinámos e tudo se resolve.

Deitou umas rezas sobre a viúva e despediram-se.

A viúva saiu da sala transfigurada, renovada, novo alento lhe tinha chegado na presença daquele homem. Respirou fundo, olhou fixamente o taxista e deu ordem para partirem.

Mas o Toninho não se ficava por aqui. Dedicava-se também ao espiritismo. Dizia que tirava o diabo do corpo das pessoas.

O receituário nem sempre correu bem. Algumas pessoas ficaram muito mal depois de tomarem os medicamentos, tendo recorrido aos médicos de Castro de Dona e explicado tudo. 

Reuniram os médicos da terra e decidiram pôr cobro a tamanha intrujice. Enviaram queixa para a Ordem, juntando as receitas, os depoimentos dos doentes e os seus testemunhos.

Quando o Dr. Truz, Diretor Técnico da farmácia, soube da queixa, chamou o Gropes à pedra. Prometeu, este, terminar com o conluio com o bruxo de Franzelos e lá se abafou o caso.

Nesta terra, têm prosperado os espertos à sombra dos mansos, pouco instruídos, sem conhecimentos da matéria e os que têm saber, encolhem-se por medo de represálias.

 

Teresa A. Ferreira, 11-12-2020

Esta crónica é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, factos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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