Chrys Chrystello

Chrys Chrystello

O medo dos imigrantes

 23.1.2019

Por todo o mundo, desde há uns anos se intensificaram as manifestações públicas contra imigrantes, qualquer que seja a razão apontada para tal medo. Há sempre o temor do que é, de quem é diferente, e diferentes somos todos, mesmo sem sermos imigrantes. Portugal país de miscigenação desenfreada ao longo dos séculos, nos quatro cantos do mundo deveria servir de exemplo, tanto mais que desde há décadas vive da sua emigração para países distintos onde se oferece futuro melhor a quem quiser trabalhar. Lembremo-nos da tragédia dos anos 60 com a emigração a salto para os bidonville da nossa vergonha em França, ou mais recentemente a fuga de enfermeiros para o Reino Unido, entre dezenas de exemplo de migrações dos madeirenses e açorianos para o Hawai no século XIX, para o Brasil dos açorianos no século XVIII que ali ajudaram a fundar o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, e os exemplos podiam ser multiplicados como o prova a rica herança cultural existente hoje em dezenas de países…raros serão os países sem portugueses ou seus descendentes. Num e noutro caso esses portugueses foram abandonados à sua sorte ao longo de cinco séculos e ainda hoje são, a menos que se precise muito das suas remessas de dinheiro…

Escreveu em tempos Miguel Castelo Branco[1]Das colonizações britânica e holandesa nasceram Estados, mas da portuguesa nasceram comunidades de afeto. Praticamos o monopólio, tentando destruir a concorrência, mas contávamos com fidelidades regionais que extravasavam largamente o interesse diplomático, comercial e político da coroa. A língua portuguesa era língua franca, “portugueses” eram todos os que professassem a fé católica, amigos e aliados todos os que aceitassem, enriquecendo, um quinhão nessa comunidade continental de comércio, favores, acolhimento e proteção. As “lusotopias” não eram da Coroa, mas das comunidades que se formavam, cresciam e prosperavam, na unidade religiosa das igrejas e na entreajuda das misericórdias. Estas lusotopias resistiram aos ventos e tempestades da história. Teimosamente, mantiveram a língua, os costumes, a memória da linhagem. Na Birmânia, no Sião, na Malásia, na Indonésia há populações que orgulhosamente afivelam o nome de Portugal. Os outros passaram. Nós ficámos lá, sem apoios e sem estímulo do Portugal distante, abúlico e “europeu”, que regrediu para uma visão tardo-medieval da esfera de contactos internacionais: a Bruxelas, a costa da Guiné e pouco mais. Felizmente, a “Ásia Portuguesa” está para além das Portas do Cerco, do bazar de Díli e dos limites de Goa. Pede-se que os decisores de Lisboa abram os olhos e consigam tirar partido da imensa vantagem que foi, é e será, a grandeza em terras da Ásia.

E no tema da presença portuguesa. Jorge Morbey escreveu, em tempos (23.1.2006), ao então Presidente Cavaco e Silva uma longa missiva da qual se extraem excertos:

Como referiu o Arcebispo Emérito de Mandalay (Birmânia) U Than Aung, descendente de portugueses, onde a maioria do clero católico é de origem portuguesa com origem em Pegú (1600), quem nunca recebeu a mais ténue manifestação de solidariedade de Portugal nada tem a esperar. Que poderão as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente esperar? A incapacidade portuguesa nesta matéria tem sido uma evidência secular, filha da ignorância e do preconceito.

A pequena Cristandade Crioula Lusófona de Korlai [Chaúl], na Índia, somente em 1982 seria revelada ao Mundo pelo etnólogo romeno Laurentiu Theban. O seu crioulo é designado por Kristi. A Cristandade Crioula Lusófona da Birmânia já não usa a língua crioula e perdeu os nomes e apelidos cristãos, apesar de permanecer fiel à religião católica.

As Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente mantidas na ignorância dos conflitos entre Portugal e a Santa Sé lutaram anos sem fim contra as novas autoridades eclesiásticas por as considerarem estrangeiras. Clamaram sempre pelo envio de clero. De Portugal, de Goa ou de Macau. Em vão. A transferência de domínios entre países europeus, de Portugal católico para a Holanda protestante, constituiu o pano de fundo em que emergiram as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente.

Com a substituição da dominação portuguesa, permanecendo nas terras que as viram nascer, deportadas para outras paragens, ou forçadas à emigração, essas comunidades mestiças talharam a sua identidade que perdurou até aos nossos dias, assente em dois pilares principais: a religião católica e a língua crioula. A religião fora trazida de Portugal ou através de Goa. Convertidos ou nascidos nela, com ela haveriam de morrer, geração após geração. A sua língua, o crioulo, era a língua portuguesa que lhe garantira o estatuto de língua franca no litoral da Ásia e da Oceânia, desde o séc. XVI até à sua substituição pelo inglês, no séc. XIX. Holandeses, ingleses, dinamarqueses e franceses não podiam prescindir de um “língoa” [intérprete] a bordo para poderem comerciar nos portos do Oriente, na língua que as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente falavam e, muitas, ainda falam.

Tratados, entre países europeus e poderes locais, foram firmados nessa língua, por ser a única a que os europeus podiam recorrer para comunicar no Oriente. Ainda hoje, Cristão” [Kristang] e “Português” [Portugis] são sinónimos.

A profanação e a destruição de igrejas e mosteiros, a expulsão dos padres, a proibição de atos de culto católico, as deportações maciças, a redução de muitos à condição de escravos, compeliram os membros dessas cristandades à clandestinidade e à emigração: Macau, Índia, Insulíndia, Sião e Indochina. Tais irmandades permaneceram até aos nossos dias e conservam determinadas prerrogativas que limitam a autoridade dos párocos.

Perdida a confiança que a Santa Sé depositara desde o séc. XV no Rei de Portugal, na sequência do corte de relações diplomáticas do Governo liberal em 1833 e a extinção das ordens religiosas por decreto de 31 de maio de 1834, o Padroado Português do Oriente sofreu um golpe mortal, na Índia, no Ceilão, no Sudeste Asiático, na China e na Oceânia.

Os missionários do Padroado não seriam substituídos apesar de o clero secular de Goa, numeroso e bem preparado, acorrer em seu socorro. A língua crioula falava-se nas Cristandades Crioulas da Tailândia (Ayuthia ou Ayutthaya) e, posteriormente, Banguecoque, até aos anos 50 do séc. XX, onde permanecem vocábulos correntes no relacionamento familiar e nas práticas da religião católica.

Na Indonésia, Java, Flores [Larantuka e Sikka], ilhas de Ternate e Tidore, em Bali, em Timor [Lifau e Bidau] e no Bangladesh [Chittagong e Daca] – até aos anos 20 do séc. XX era muito viva a presença da língua crioula nas Cristandades locais. Em Daca existe vocabulário crioulo entre os católicos locais. © Jorge Morbey.

 

Dito isto, e pondo de parte a questão do genocídio aborígene na Austrália, o que lá aprendi durante décadas foi que podíamos viver lado a lado com os nossos dissemelhantes seres humanos, em paz e harmonia, integrados (mas não-assimilados), mantendo a língua e cultura de origem, enriquecendo a cultura local, incrementando de forma constante o crescimento económico australiano e aprendendo a lidar com a diferença de mais de 200 comunidades étnicas diferentes. Os imigrantes que ora povoam a Austrália vieram de todos os cantos do mundo e integram aquilo que muitos consideram a única sociedade verdadeiramente multirracial harmónica neste mundo de confrontos permanentes. Este o exemplo de que vos queria falar em oposição a Portugal, a toda uma Europa racista e xenófoba. Voltaremos a este tema.

Para o Diário dos Açores e Diário de Trás-os-Montes

Chrys Chrystello, Jornalista

[MEEA/AJA (Australian Journalists' Association – Membro Honorário Vitalício nº 297713,) carteira profissional AU3804]


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