Teresa A. Ferreira

Teresa A. Ferreira

Morte Insuspeita

S - Zé?! Olha que belo par de pernas ali vai. Carai…! Aquela anca rebola como… - sentado na esplanada, ia tirando conversa com o camarada de copos, enquanto dava um trago no fino, lambia os beiços e trincava tremoços.

Z - Traz a santinha consolada, não achas?

S - Acho, acho. E de que maneira. Deve rezar todos os dias! Quem andará a comer a viúva? – indagava, Serafim.

Z - Não olhes para mim! É mais a fama do que o proveito. – entre risos, Zé afirmava castidade neste caso.

S – Temos de prestar atenção às companhias.

Z – E, por acaso, achas que ela não é fina como um alho, para se deixar apanhar?

S – Veremos… Peixe com fome sempre morde o isco.

Z – Mas esta anda de barriga cheia. Não viste como rebolava a…

S – Expliquei-me mal. Algum erro há de cometer e nós vamos dar por ele.

Camila seguiu em direção à loja de artigos de decoração para o lar, onde entrou.

- Boa tarde, Sr. Antunes! Como vai essa saúde?

- Boa tarde, minha Senhora. Vou indo, como Deus quer e se pode.

- Ainda bem. Gosto desse sorriso!

- Posso ajudá-la em alguma coisa?

- Por acaso…sim. Vou fazer um jantar especial e gostaria de…

- Não diga mais. Bateu à porta certa, minha Senhora. Recebi, esta semana, uma toalha de seda, bordada a fio prateado, que é um assombro. Vou buscá-la.

Deambulou o olhar pela loja, procurando um castiçal, velas, um centro de mesa e argolas para guardanapos.

- Veja bem esta preciosidade. – Antunes estendia a toalha em cima da mesa.

- Realmente é uma riqueza. E o preço?

- Veja se precisa de mais alguma coisa que depois faço-lhe uma atenção.

- Por acaso vi este castiçal…e aquele encantador centro de mesa…e estas argolas tão singulares…

- Tem muito bom gosto. Combina tudo na perfeição.

- Acho que é tudo. Faça-me a conta, se faz o favor? Veja lá que o meu ordenado é magrinho…!

- Ora deixe cá ver… 235,04€.

- Tanto! Isso é muito. Vai-me sair uma fortuna, este jantar.

- São peças que lhe ficam para toda a vida, isto não é de usar e deitar fora, é um investimento…

- Pois sim, pois sim…. É muito para as minhas magras economias.

- Vou ver o que posso fazer. – e pôs-se a fazer contas, e mais contas, e contas… - O mínimo é a conta redonda. Fica nos duzentos e não se fala mais nisso. Pode ser?

- Valha-me Santa Maria Madalena…

- Não se vai arrepender. Vai bem servida.

- Aqui tem o cartão, Sr. Antunes.

- A sua fatura e as compras, minha Senhora.

- Obrigada! Boa tarde e saúde.

- Obrigado, minha Senhora. Volte sempre. Boa tarde!

Passou pelo minimercado onde aviou a lista dos ingredientes de que necessitava para o jantar. Pagou, e foi até casa, num ar feliz…

No dia seguinte, fazia três meses que recebia em casa um cavalheiro mais velho do que ela, por quem andava enamorada. Este namoro era muito discreto, embora não houvesse qualquer impedimento entre as partes. Eram viúvos, livres e sem contas a prestar, mas o peso da idade exigia um certo recato. Camila tinha cinquenta e picos, e Fernando mais dez. O fogo da paixão levava Fernando a visitas quase diárias, e Camila correspondia com muito agrado e carinho. Mas não sabia que era useiro e vezeiro de comprimidos para manter o desempenho sexual.

Acordou cedíssimo, para ter tudo pronto para o jantar. Empenhou-se a valer. Foi à cabeleireira compor o cabelo, arranjou as mãos e os pés, fez a depilação, limpeza de pele… E rumou até casa.

Resolveu fazer um arroz de cabidela com frango do campo e, de entrada, melão com presunto. Era um jantar íntimo e a idade não permitia o estômago muito cheio. A sobremesa foi pudim Abade de Priscos. Um licor a acompanhar e…dali a nada, rebolavam na cama, num fogo de meter inveja a muita gente. Quantos beijos e carícias foram trocados; quanto suor saiu pelos poros; quanto desejo incontido se realizou; quanto podem duas almas enamoradas…

- Fernando? Fernando? Desmaiaste? Fala comigo? O que tens?... - ia dando pequenas palmadas na cara.

Finou-se. Nesse dia, abusara dos comprimidos e o coração, já se sabe, não é de ferro.

- Valha-me Santa Maria Madalena…e agora, o que é que faço? Minha rica santinha, vem em meu auxílio.

Foi à sala beber um copo de água e voltou ao quarto. Respirou fundo, enquanto ia pensando numa solução para tamanho embaraço.

Vestiu-o, meteu a mão aos bolsos à procura das chaves de casa e esperou, cerca de três horas.

Foi arrumar a sala, pôs a loiça a lavar na máquina e deixou tudo sem qualquer vestígio de festa íntima.

Por volta das duas da manhã, pegou no Fernando pelos tornozelos, e começou a arrastá-lo pela casa fora, no mais profundo silêncio. Abriu a porta de casa, espreitou as escadas…silêncio sepulcral, tal como a situação exigia. Arrastou-o para o piso inferior, do mesmo jeito, e o pobre morto lá foi contando cada degrau, batendo com a cabeça: pum, pum, pum.... Abriu a porta de casa e deixou-o deitado no chão, no meio da sala, como se ali tivesse caído de morto. Deixou as chaves em cima da mesa e abalou. Foi mais sorrateira que uma borboleta.

No dia seguinte a empregada da limpeza deu de caras com o morto. Desatou aos gritos e todos os vizinhos acorreram em prontidão.

Ninguém soube a verdade do caso a não ser um padre, amigo.


© 𝑻𝒆𝒓𝒆𝒔𝒂 𝒅𝒐 𝑨𝒎𝒑𝒂𝒓𝒐 𝑭𝒆𝒓𝒓𝒆𝒊𝒓𝒂, 17-05-2023

    𝙉𝙖𝙩𝙪𝙧𝙖𝙡 𝙙𝙚 𝙏𝙤𝙧𝙧𝙚 𝙙𝙚 𝘿𝙤𝙣𝙖 𝘾𝙝𝙖𝙢𝙖,
    Mirandela, Bragança, Portugal.


Foto:
© Luís Borges
Serra de Bornes, Macedo de Cavaleiros, Bragança, Portugal.



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