Teresa A. Ferreira

Teresa A. Ferreira

Madame Josephine: casamento em Alvites (III - Cap.)


Os convidados iam chegando aos pares, como convém, exceto José Carlos, vinha sozinho. Desde o retumbante não que recebera de Dione, quando a pediu em casamento, nunca mais se lhe vira companhia feminina. Os anos passaram, ambos amadureceram, mas José Carlos mantinha ainda uma certa jovialidade e graça.

- Vejo que também veio sozinha à sua própria festa?!

- É verdade. Não encontrei melhor companhia do que a minha.

- Não seja tão fria, Josephine. Proponho-lhe que me aceite por companhia?

- Ah, ah, ah…! Sempre tão previsível.

- Apanha-me desprevenido.

Josephine rodopiou graciosamente para que José Carlos visse todos os pormenores.

- Reconheço os brincos, o colar, a bracelete…

- Pedi-os emprestados à mana Dione. Nunca lhes dá uso e hoje fazem-me imensa falta…

- Está encantadora – aos meus olhos, claro -, mas não sei se os seus convidados vão apreciar o arrojo do vestido?!

- Tanto melhor. Enquanto me costuram ou desmancham o vestido, roubo-lhes a alma.

- O que está para aí a magicar? Conheço esse leve elevar do sobrolho esquerdo.

- Quem me dera que fosse coisa pouca. Aceito a sua amável companhia. Deve ser dos poucos que tem graça nestas paragens.

- Então por que preparou a festa? Não tem de os aturar, ora essa?!

- Outro baralho e outras modas que habilmente terei de jogar.

- A que se deve a festa, não é uma espécie de despedida de solteira dos noivos?

- Oficialmente…é. Na prática é um alibi. Quer entrar no jogo a favor do Amor?

- Tem-me aqui por inteiro, mas preciso de conhecer o baralho, as regras do jogo, quem são os parceiros e qual é o montante em jogo?

- Parece o meu cunhado Filipe a falar.

- Esse fala mais do que joga. E come menos do que a fama.

- Quem come ele?

- Ora Josephine…sempre a mesma! Não sei como ainda ninguém descobriu. Para si é novidade, acabou de chegar, para mim é trivial.

- Como é que ainda não foram descobertos?

- Ela é casada, inteligente e sagaz. Não se deixa apanhar em falso.

- Mas o José Carlos sabe quem é…

- Sei, sim, coisa que leva uns anitos. Mas não lhe vou estragar o gozo de descobrir pelos seus próprios meios.

- A parada está a subir… agora é que vou prestar atenção redobrada em tudo.

- E todos. Pode estar bem perto de si.

O salão ia ficando cada vez mais cheio de convidados que não tiravam os olhos de Josephine. Os homens despiam-na com o olhar; as senhoras vestiam-na o mais possível. Restava o amigo José Carlos que permanecia cego por Dione e era incapaz de olhar para outra mulher.

Anuncia que o jantar está servido - podem passar para o salão de jantar ao lado.

Prevendo que José Carlos viria sozinho, deu-lhe um lugar próximo. O lugar de Antoine ficara vazio, nas não de todo. Deixara lá um ramo de rosas amarelas e o quadro que, a seu tempo, seria mostrado.

Os convidados falavam do trivial – conversa de circunstância –, sabiam que Josephine era uma mulher prática - não os convidara por amizade. Abrir a boca mais do que o razoável, seria entregar-lhe pontos que ela habilmente usaria em uma ou outra circunstância. Todos sabiam que o jantar era um jogo, um jogo forte.

Quem resiste a comida divinal acompanhada pelo melhor vinho de Bordéus? Ninguém. Era aí que residia a esperança de poder encontrar as respostas que tanto procurava.

Augusta, desconfiada de algo, baixou-se discretamente fingindo que apanhava um garfo. Deitou os olhos para debaixo da mesa. Viu a mão de Filipe em cima do joelho de Judite e ela acariciava-a. Pobre Augusta: engoliu em seco o que tinha descoberto e não mais descolou do casal de amantes. Judite era a mãe do noivo…

Isabel não tirava os olhos de outro casal suspeito: o noivo Arnaldo e a filha da condessa de Abambres, Filomena. Trocavam leves sorrisos e olhares de quem tem fome de amor. Seriam amantes? Ou não passaria de um jogo de sedução? Havia que estar de olho vivo a todo e qualquer detalhe.

Quanto a Helena…prendera-se em conversas intelectuais com o pai do noivo, homem culto, viajado, mas anafado e enfadonho, abrindo exceção a quem realmente tivesse bagagem para o acompanhar.

A tia Celestinha andava entretida com uns jovens que adoravam poesia. Cada um mostrava o que sabia da arte de poetizar. Baltazar chegou a declamar emotivamente um soneto camoniano, em tom mais contido. Que maravilha! Sem que os jovens se apercebessem, ia-lhes puxando pelo fio da meada. Ficou ciente de que Gabriel era um excelente pintor e amante da poesia, embora servisse os dois solares como jardineiro. Ora, ora, vejam bem: um jardineiro cheio de dons, um artista! Baltazar era irmão de Arnaldo, o noivo enjeitado. Este tinha pinta. Olé, se tinha. Conhecia poesia de vários autores famosos, portugueses e estrangeiros, e sabia vários poemas de cor. Que regalo. Mas…- há sempre um “mas” nestas coisas das virtudes – o moço era gordo e anafado e a tia Celestinha gostava de gente elegante, gente que cuida de si com brio. Bom… escapava o facto de ser culto e amante da poesia. Descobriu que o noivo não estava de acordo com o casamento, mas que fazer se era a vontade imperiosa dos pais?! Isto de casamentos arranjados era coisa que a intrigava e espicaçava para desfazê-los. Reparou na jovem que estava em frente ao noivo, Filomena. Mas porque estaria ela ali se não era parte de nenhuma das famílias? Baltazar explicou-lhe que o irmão a convidou como amiga próxima da família. E que próxima! Aqueles olhares cruzados, os olhos cintilantes como duas estrelas, não era febre, era amor.

Os convivas estavam cada vez mais soltos – vinho do melhor de Bordéus… Era o que Josephine queria, ver toda a gente animada e de língua solta. Quem estava mais animado era José Carlos. Começava a soltar umas piadas tão fulminantes…mais certeiras do que um raio.

Tomai nota desta tirada:

- Madame Josephine: este vinho é uma perdição. Mal empregue em quem não o sabe apreciar. O Senhor Filipe bebe três ou quatro garrafas de vinho a uma refeição. Depois de bem regado, como pode ter conduta de homem honesto e ser exemplo e orgulho da família? Eu também me enfrasco, mas não tenho família a quem dar contas. Se tivesse uma esposa como a dele, até lhe beijava os pés, ao invés de andar a cheirar saias fora de casa.

Filipe quase perdia a compostura. Não fosse um toque que a amante lhe deu, para se ficar e não alimentar a conversa, tinha dado umas lambadas em José Carlos.

- Querem saber por que armou este casamento? – ouvia-se um burburinho na sala e em seguida um silêncio sepulcral – Está mais do que falido, esse vadio. Nunca fez nada na vida, a não ser comer, beber, jogar e sugar todo o dinheiro que consegue, à esposa, para gastar em presentes com a amante.

Indignado com a situação, Filipe atirou com o guardanapo para cima do prato.

- Calma, meu caro amigo. O melhor está para chegar. Abram esse quadro, por favor.

À medida que o papel se ia rasgando, a atenção de todos voltava-se para o quadro. “O que conteria de tão importante?” – era a questão geral.

Ouviu-se um grito na sala – Cecília não acreditava no que estava a ver. Quem teria feito a maldade de a expor daquela maneira?

Josephine deixou que a sala pegasse fogo e só abriu a boca quando viu a sobrinha em pranto.

- Olhem bem para a pintura. Sou eu quando era jovem. Foi o meu marido que fez esta maravilhosa pintura. Confirmem a assinatura. Estão a ver este sinal nas minhas costas? A Cecília não tem sinais nas costas. Mas podia ser a Cecília. E que mal teria? É arte.

O Arnaldo percebeu a cilada. Estava à espera de que algo lhe caísse nas mãos para desfazer o noivado. Ergueu-se e disse:

- Senhora minha mãe, senhor meu pai, senhora Dione, senhor Filipe, família e amigos: tenho a dizer-vos que não há mais casamento. Eu não tenho sentimentos pela Cecília, nem ela por mim. Retiro-me.

José Carlos, olhando para Josephine, disse “bravo!”.

Na sala ninguém mais tocou nos pratos. O mal-estar era medonho. Cecília não sabia se havia de rir ou chorar, tal a camada de nervos; Dione estava estarrecida com tanta descoberta num só jantar; Filipe ainda achava que podia salvar-se…afinal o nome da amante não fora exposto e tudo podia ser tido como efeitos do vinho, nada para levar a sério.

Os convidados foram saindo, sem grande algazarra, não fosse José Carlos abrir ainda mais a boca. Cada um bem sabia os telhados de vidro que carregava.

Dione foi atrás do marido sem dizer uma palavra. Passou pela biblioteca e subiu. Quando entrou nos aposentos, apontou a arma e disparou 3 vezes sobre Filipe…



Igreja Paroquial de Alvites / Igreja de São Vicente


Continua...      A morte de Filipe será tão óbvia?


© 𝑻𝒆𝒓𝒆𝒔𝒂 𝒅𝒐 𝑨𝒎𝒑𝒂𝒓𝒐 𝑭𝒆𝒓𝒓𝒆𝒊𝒓𝒂, 05-07-2023
      𝑵𝒂𝒕𝒖𝒓𝒂𝒍 𝒅𝒆 𝑻𝒐𝒓𝒓𝒆 𝒅𝒆 𝑫𝒐𝒏𝒂 𝑪𝒉𝒂𝒎𝒂,
      𝑴𝒊𝒓𝒂𝒏𝒅𝒆𝒍𝒂, 𝑩𝒓𝒂𝒈𝒂𝒏ç𝒂, 𝑷𝒐𝒓𝒕𝒖𝒈𝒂𝒍.

Este texto é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. 


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