Teresa A. Ferreira

Teresa A. Ferreira

Chico das cebolas

Hoje, só por hoje... Deixo-vos com o Chico das cebolas...

A minha mãe tinha vários predicados: exímia na arte da culinária e pastelaria, uma mãe carinhosa, generosa, uma singular contadora de histórias e anedotas.

De viva-voz...não tenho o jeito e a teatralidade dela para contar uma história ou anedota. Fico-me pela escrita.

Já vos ouço a ajeitar as cadeiras e a avivar o lume com mais um toro de lenha - neva na minha terra! E eu, aqui, repimpada no sofá, quando devia estar sentada no escano junto à lareira, com as chouriças por cima a piscarem-me o olho “bota-me às brasas e lambe os beiços”!

Que maravilhosos serões à lareira! Anedotas contadas ao despique, e, pelo meio, uma história mais demorada, mas não menos engraçada.

Incapaz de sossegar, enquanto escutava a história, atirava com umas pinhas para cima das labaredas para abrirem e depois tirava-lhes os pinhões. Que trabalheira e paciência, a minha, para comê-los!

A maioria das histórias, que escutei à minha mãe, era verdadeira. Digo isto porque, pelo meio, aparecia uma que alguém lhe havia contado. Claro está que não se pode afiançar a veracidade. Mas, entre verdades e assim, assim, vamos lá ao que interessa.

O gato dorme enrolado no meu colo - tendo em conta o frio que está, não é para menos! -, nem quer saber do caso. Talvez acorde quando desatar a rir das tontices que vou escrever. Rio, pois, tanto ou mais do que vós. Relembrar, velhas histórias, deixa-me nostálgica. Voo, num instante, a um passado doce em que fui muito feliz. Nem sabia que era tão feliz.

Por acaso até calhava bem um cálice de licor de noz que a ti Maria Fontoura, de São Pedro Velho, me ofereceu. Calhava, calhava! É escusado levantar-me. Acordo o gato, e ele está tão sossegadito…. Deixá-lo estar. 

O que vos quero contar passou-se numa olga (1) a caminho das Arcas. Quem não souber onde fica, não tem mal nenhum. É uma olga e o resto já o ireis saber.

O Chico das cebolas - era assim conhecido porque não havia ninguém que as tivesse de melhor qualidade - era proprietário de uma valente olga, junto ao rio de Macedo. Trazia-a sempre bem amanhada. Mal aparecia uma erva, toca de mondá-la. Colhia de tudo um pouco, trabalhava com afinco e tinha brio na colheita.

No tempo mais quente, finda a lavoura, despia-se e ia ao rio. Como não era costume andar por ali ninguém, àquelas horas, atirava-se à água com a roupa com que veio ao mundo - em porreta (2)! Banhava-se, pulava de uma pedra mais alta para dentro da água - nesta altura do ano já não era muita -, e era feliz, muito feliz!

Levava uma vida de muito trabalho; mas, a luz da felicidade iluminava-lhe o rosto. Por onde passava ouviam-no cantarolar alguma moda daquele tempo - e tinha bom jeito para cantar. Cantava enquanto trabalhava; mas, quando ia refrescar-se no rio...parecia um rouxinol no seu melhor trinado! Subia a uma fraga e o palco era dele. Os peixes faziam de público; os choupos circundantes, de orquestra; e a água refletia o som com mais clamor. Quanta felicidade emanava naquele canto.

Havia umas olgas, mais abaixo, que eram pertença do ti Ildefonso, pai da Alzira e da Margarida - belas moças...não desfazendo de quem me lê.

Certa tarde, ti Ildefonso, pediu às pequenas para aparelharem o burro à carroça e fossem à olga buscar melões, melancias, jerimuns e, se o feijão-verde não estivesse grado, também colhessem um pouco.

As moças, em vez de irem pelo cruzamento do Senhor dos Aflitos, foram por detrás, pela rua da Pateira. Lá andavam, entretidas...na apanha da fruta, em silêncio...até que...escutaram uma melodiosa canção. A curiosidade falou mais alto e afastou-as dos recados. Pé ante pé, foram ficando cada vez mais perto do cantor. Esconderam-se atrás dos choupos. Mas o interesse aguçava-se, e elas avançavam delicadamente. Quando se deram contam, estavam a escassos metros do cantor. Ficaram embasbacadas e estáticas, com o que viam e ouviam. Nunca viram um homem nu, e, menos ainda, cantando tão bem! Entreolhavam-se sem saber o que fazer. Faziam sinais, entre si, mas não havia meio de arredarem o pé. 

Ora, o Chico!...o Chico estava em dia de forte inspiração - cantava mais afinado do que nunca. Era tal o entusiasmo e abstração que nem deu conta da assistência - bonita e formosa assistência, por sinal!

As pequenas, cada vez mais eufóricas, começavam a soltar pequenos risos, até que a mais nova não se conteve e desatou a bater palmas.

Entornou-se o caldo!

O Chico, num impulso, pulou para dentro de água e começou a gritar:

- Quem está aí? Apareça quem é, ou desapareça, que não tenho condições de sair daqui.

Ai as moças! Querem lá ver?! Desataram a fugir até à olga do pai; meteram a fruta na carroça; e tocaram o burro dali para fora. Foram pelo caminho de onde vieram - não quiseram ser reconhecidas, a bem-dizer.

Quanto ao Chico das cebolas... Não sei se reconheceu alguém. Por precaução, passou a tomar banho de cuecas.

Já as manas...começaram a ir mais vezes à olga, por causa da fruta...

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(1) - Olga:  propriedade agrícola destinada a horticultura; courela de terreno; leira; belga; Portugal (regionalismo) planície no meio de outeiros.

(2) - Em porreta:  Portugal (regionalismo) nu.


Texto:
© Teresa do Amparo Ferreira, 18-01-2023

Natural de Torre de Dona Chama, 
Mirandela, Bragança, Portugal. 

Foto:   Rio de Macedo junto à ponte dos Vilares.



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