Consta - conta-se - que Manuel Vicente D Anunciação chegou ao Recife em 1820, com uma mão à frente e outra atrás. Seria judeu? Fugiria de Portugal? E de onde ao certo? A vida deste emigrante português tem muito mais de nebuloso do que claro.

Em vida e depois dela. Sabe-se que enriqueceu, que se chateou com um filho esbanjador e correu a esconder tudo o que tinha num banco. Até hoje. Pelo meio, Manuel procriou e morreu. Mas nenhum dos seus descendentes consegue pôr a mão naquilo que lhes pertence por direito - e a cujo montante já perderam a conta há décadas. Porque ninguém descobre o registo do bendito depósito!

A batalha judicial tem já 26 anos e sofreu no início do mês passado um duro revés. O Tribunal de Pernambuco determinou que as provas que existem - porque as há - não dão consistência a nada e que, portanto, os herdeiros não têm nenhum depósito bancário para partilhar. Um depósito que só contará - consta, mais uma vez - com uma tonelada e meia de barras de ouro, orçada hoje em 24 milhões de euros, fora o resto... A reserva de Portugal, para ter um termo de comparação, anda nas 50 toneladas!

Mas voltemos ao princípio da história que nos é relatada por Marco Antinossi, jornalista da agência Lusa. Manuel Vicente D Anunciação era um ilustre anónimo. Chegado à capital do Pernambuco, seguiu 216 km terras dentro por caminhos de difícil acesso e parou em Pesqueira. Inexplicável. Reza a lenda - porque a história, já se viu, não existe - que criou laços com os índios Xukuru do Orubá com quem acordou a venda de madeira e exploração de ouro. E fez obra na produção de cana de açúcar.

\"Era um homem bom, que gostava de ajudar os pobres e que tratava bem os seus escravos (tinha seis dezenas deles) e os índios da região\". É Francisca Santana, pobre, quem conta. Bisneta de Manuel, acamada num casebre com vista para a mansão do rico comerciante de antanho (ver caixa), onde se diz que escondia gente que falava \"enrolado\".

Judeus, calcula-se. A tetraneta, menos pobre (estudante de filosofia e autora da biografia do antepassado \"Sangue, Suor e Riqueza\"), acredita que Manuel Vicente geria uma rede de protecção aos judeus europeus no Brasil. Ana Lígia Lira acredita também na justiça divina, que é como quem diz, na recuperação da imensa fortuna familiar... Salva por dom de visão do tetravô. Manoel Tonel, o filho \"gastador que utilizava cédulas de dinheiro para acender seus charutos\", abriu-lhe, digamos, os olhos. E deu-lhe um tiro no ombro.

Manuel Vicente meteu-se então por 20 dias de trabalhos. A \"lombo de burros\", carregou ouros e jóias até Recife e entregou tudo no \"The London Bank & South America Limited\" (hoje Lloyds Bank PLC). Foi em 1878. Quiçá a atitude certa para a altura, mas terá sido o erro daquele que se tornou numa das maiores fortunas da colónia portuguesa.

O resto da história é uma sucessão de episódios rocambolescos. E processos judiciais. O último arrastou-se 26 anos até à decisão do mês passado. Antes desse, outro fracassara, apesar das provas. Falta o registo do depósito de 1878, diz hoje a Justiça. Apesar de o próprio banco, aflito com falta de recursos para alimentar uma fortuna parada a render há décadas, ter lançado um SOS no ido ano de 1928.

Era um edital e rezava assim \"Pelo presente edital ficam convocados os possíveis herdeiros a se habilitarem com documentos par os mesmos fazerem jus a herança deixada pelo casal e que se encontra depositada neste banco sob a nossa responsabilidade. Sentimo-nos impelidos assim, ressalte-se, de proceder, face à grande soma já atingida pelos juros auferidos e que, continuando assim as nossas reservas, se farão insuficientes para garantia total do depósito\". Em 1972, uma antiga funcionária lembrara-se do depósito 6843 e, em 2002, outra falaria numa ficha que nunca esqueceria. \"Chamava muito a atenção de qualquer pessoa por ser muito antiga e não haver lançamentos de depósitos ou retiradas, só continha um contrato entre as partes com juros de 1,5% ao ano em 1878\".

A história segue para a semana, com um recurso no Supremo Tribunal de Justiça de Brasília. E isto é enquanto não surgem herdeiros deixados em solo lusitano, despertados pelo livro de Ana Lígia Lira. A promessa é de lançamento breve em Portugal...

* Com agência Lusa

A mansão dos tesouros

A antiga casa do comerciante português Manuel Vicente D Anunciação, na fazenda Lagoa dos Cavalos, a cerca de cinco quilómetros da cidade de Pesqueira, resiste ao tempo e ao abandono.

Imponente mesmo para os padrões actuais da região 144 metros quadrados de área construída e telhado com eira e beira, na época símbolos de poder e dinheiro.

Actualmente, alberga a família de António da Silva, um pequeno agricultor da região que invadiu a mansão abandonada há cerca de 20 anos. As pequenas reformas que lhe tem trazido desde então mantêm a casa de pé, mas descaracterizam a antiga construção.

O forro do telhado, todo em madeira de cedro, por exemplo, já foi completamente destruído. E as paredes de 70 centímetros de espessura, padrão da época, estão a ser substituídas por outras menores, de tijolo, no lugar do tradicional adobe. O porão foi todo aterrado, o que pode ter encoberto vestígios de um suposto esconderijo, tal como o sótão da casa.

Supõe-se que eram espaços utilizados para esconder judeus fugitivos das autoridades religiosas europeias.

A casa alimenta também a imaginação dos moradores da região, para quem as paredes guardam até hoje tesouros escondidos. António Silva já encontrou oito cavidades secretas nas paredes, supostamente utilizadas por Manuel Vicente para esconder parte de sua fortuna.

\"Infelizmente, não encontrei nada, mas sei de histórias antigas em que pessoas da região escavavam o piso e todo o porão em busca de parte do ouro perdido\", contou o fazendeiro à agência Lusa.



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