Chrys Chrystello

Chrys Chrystello

(O meu) Timor 20 anos depois do referendo

CRÓNICA 283 (o meu) TIMOR 20 ANOS DEPOIS DO REFERENDO 29.8.19

 Pintura de Margarida Bem Madruga, oferta ao CNRT, Timor-Leste, 1999 (reprodução autorizada pela autora no meu livro Crónica do Quotidiano Inútil 2011))

 

Quem não me conhece cedo aprende que sou cidadão australiano e ainda hoje não deixo de falar de Timor com a nostalgia dessa paixão iniciada em setembro de 1973 e que acabaria por acarretar, como jornalista, por mais de 24 anos de ativismo.

Depois foram mais 22 anos de memórias e ações, como a homenagem feita ao referendo de 1999 para a independência este no em abril no 31º colóquio da lusofonia.

Afinal, temos dois patronos timorenses nos colóquios da lusofonia, os dois Prémio Nobel da Paz de 1996 (o Bispo Dom Carlos Ximenes Belo e o ex-presidente José Ramos Horta).

Alguém me perguntou o que sentia por Timor, eu que nunca mais lá voltei desde 1975, àquela que  foi a minha primeira pátria de adoção. É difícil descrever as lágrimas que me vieram às faces quando em 2014 trouxe de Díli um grupo de danças  no 22º colóquio em Seia. Lembrei-me dos dias tristes de agosto de 1975 quando estava (quase) prestes a regressar num avião das FAP aos apartamentos da SOTA no Largo de Lecidere, onde ficaram mobílias, mota, jipe e outros haveres.

Mas quis a ingenuidade jovem, a ganância dos blefes da UDT e da resposta da FRETILIN, a impreparação de tantos que eu conhecia e com quem convivera, que se envolvessem numa guerra fratricida, em que Lisboa não se quis envolver não dando diretivas a um comandante-em-chefe e que acabaria por resultar num governo português autoexilado na ilha do Ataúro, enquanto a teia indonésia da Operação Komodo se ia tecendo levando nela os  timorenses udetistas que nela confiaram para se verem livres de membros militares e da Fretilin. A curta guerra civil que se seguiu e impediu a realização de mais voos das FAP iria condicionar todo o meu futuro e a minha vida. Nunca nada foi igual. Depois, o resto sabem-no todos foi a concretização das minhas premonições escritas no início de 1975, a invasão sangrenta de 7.12.75, a mortandade sem nexo, 24 anos de sevícias, genocídio, tortura, dilapidação  de uma nação, culminando em 1999 na destruição sangrenta e nos massacres dos indonésios e das suas milícias timorenses.

Perguntam-me o que sinto, e respondo, nostalgia por tempos que nunca voltarão, sonhos que tolheram à nascença, a vida que refiz (como pude e soube) em Macau e na Austrália, o desgosto de nunca ter voltado (também ninguém me convidou, se calhar já se tinham servido de mim e não precisavam mais como jornalista que ao longo de décadas escreveu mais do que a maioria do mundo sobre o tema…só os 3 livros da trilogia da História de Timor têm mais de 3760 páginas, e estão disponíveis em linha gratuitamente). E sinto muito mais que não digo, nem interessa o que penso, mas aqui fica que nem um lamento o que em tempos escrevi. (Parabéns Timor-Leste por estes vinte anos de liberdade)

549. alucinação na areia branca (timor) 11 julho 2012

 

era maio em 1975

havia luar na areia branca

sem ondas na ressaca

caranguejos azuis na fina areia

baratas voadoras à frente dos faróis

eram pequenos os lafaek e raros

quase se ouviam os corais a falar

 

ao longe sem luzes em díli

o escuro dos montes

 

entre nós e o ataúro

deslizavam barcos espiões

antecipavam a komodo

ensaiavam invasões

 

corri a alertar

ninguém quis ouvir

escrevi e denunciei

chamaram-me alucinado

 

nunca imaginei o genocídio

 

551. lágrimas por timor, até quando? 16 julho 2012

 

confesso sem vergonha nem temores

hoje os olhos transbordaram

lágrimas em cascata como diques

pior que a lois quando a chove

 

o coração bateu impiedoso

os olhos turvos a mente clara

as mãos trémulas de impotência

 

nas covas e nas valas comuns

muitos se agitaram com a morte gratuita

 

poucas vozes serenas se ouviram

velhos ódios, vinganças acicatadas

o povo dividido como em 1975

 

sem alguém capaz de congregar o povo

sem alguém capaz de governar para todos

sem alguém acima de agendas pessoais

sem alguém acima de partidos

 

temos de ultrapassar agosto 75

udt e fretilin

a invasão indonésia e o genocídio

 

faça-se ou não justiça

é urgente um passo em frente

 

é urgente alguém com visão

um sonhador, um utópico

um poeta como xanana já foi

               

alguém que ame timor

mais do que ama suas crenças

mais do que ama suas ideias

mais do que ama sua família

 

talvez mesmo uma mulher

sensível e meiga

olhar almendrado

pele tisnada

capaz de amar

impulsiva para acreditar

liberta de injustiças passadas

solta de ódios, vinganças e outras

capaz de depor as armas

  todas e liderar.

 

Chrys Chrystello, Jornalista, Membro Honorário Vitalício 297713 [Australian Journalists' Association MEAA]

Diário dos Açores (desde 2018) Diário de Trás-os-Montes (desde 2005) e Tribuna das Ilhas (desde 2019)

 


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