Uma das regiões do norte de Portugal está a atrair novo interesse de actores europeus e internacionais que estão a farejar milhões de euros em lucros, mas ao preço potencial de danos ambientais irreversíveis. A descoberta de minas de lítio em Trás-os-Montes está a inverter a situação nesta região que tem vindo a sofrer de desertificação e despovoamento há cerca de meio século.

Não só é este novo "ouro branco" utilizado para baterias eléctricas escondidasdetrás das montanhas - literalmente o nome da região, como a quantidade estimada já faz de Portugal o sexto maior produtor mundial de lítio[1]. Desde 2016, Lisboa tem vindo a estudar os múltiplos projectos de extracção apresentados por várias multinacionais com vista a iniciar operações em 2020.

Isto foi sem contar com a resistência das poucas pessoas que permanecem nas zonas rurais de Trás-os-Montes e que vivem da agricultura. Organizando movimentos "Não à mina, Sim à vida"[2], os habitantes recusam o controlo dos recursos pelas multinacionais temendo uma mutação sócio-ambiental com erosão dos solos, poluição das águas, e o fim da sua criação animal.

Esta é, de facto uma questão de mil milhões de euros para Portugal: como desenvolver o seu território mais remoto a partir dos seus recursos naturais sem prejudicar o ambiente?

A questão está a tornar-se ainda mais crucial desde que uma pandemia suspendeu actividades em todo o mundo no início deste ano. Embora se possa esperar que o governo português ajuste a sua abordagem de capacitação na preservação do seu património, é provável que a variável ambiental seja esquecida a fim de manter com urgência a economia de todo o país.

 

O INÍCIO DE UMA BATALHA, OU...

De difícil acesso, Trás-os-Montes é apropriadamente denominado, tendo de se atravessar cadeias de montanhas ao longo do parque nacional da Peneda do Gerês, enquanto ganhando altitude de mais de 1000 metros, antes de descobrir o que lá se encontra. Mouros, pinhais, vales verdes cobertos de oliveiras cinzentas e verdes irrigados por pequenos riachos, aldeias de casas de granito, e...algumas almas.

Desertificada pelo seu povo durante a ditadura - a última da Europa Ocidental, a região quase nunca recuperou da emigração massiva dos anos 60-70. Embora a integração na União Europeia tenha impulsionado a economia do país através da implementação de programas de desenvolvimento rural na região, a geração mais jovem continua a instalar-se nas grandes cidades a mais de 100 e 200 km de distância, quando não vão para o estrangeiro.

É neste contexto que o lítio, um recurso recentemente descoberto na região, parece ser uma solução para a criação de empregos e actividades a nível local. Em 2018, o governo português foi proactivo nesta matéria ao acordar um programa de desenvolvimento mineiro para avaliar os recursos minerais de lítio existentes, não apenas na região mas no país, e decidiu implementar duas unidades experimentais mínero-metalúrgicas e de demonstração, em consórcio com empresas de exploração[3].

Ao compreender que o metal poderia ser explorado numa mina a céu aberto, a população local do Norte começou a falar sobre a possível poluição do ar, do solo e da água em relação aos meios de extracção necessários. Depois, tudo assumiu uma dimensão adicional quando a concorrência entre operadores estrangeiros se tornou pública[4].

Empresas multinacionais da Austrália, Canadá e Estados Unidos manifestaram interesse, e foi posta em cima da mesa toda uma linha de produção de lítio na Europa com início  em Portugal para fornecer os programas de electromobilidade das marcas de automóveis alemãs. O lítio, o mais leve dos metais alcalinos, é cada vez mais cobiçado numa era de transição energética, em que se espera que a procura triplique até 2025, na qual Portugal poderá ser uma escolha privilegiada antes do Chile, Argentina, ou Bolívia[5].

De facto, Portugal apresentou números sobre a quantidade de lítio nas montanhas do norte que ascendem a milhões de toneladas com reservas estimadas para 30 anos de produção[6]. Perante isto, os habitantes locais de Trás-os-Montes levantaram a voz; "Consideramos um ataque ambiental o que está a acontecer. O município [onde existem pelo menos dois projectos de extracção], para quem não sabe, tem uma área considerável, a dimensão da ilha da Madeira", explicou um habitante a uma imprensa local[7].

No espaço de um ano, a imprensa nacional e internacional cobriu a notícia ao transmitir a voz dos transmontanos que têm questionado constantemente a grave perfuração de rochas a vários metros de profundidade, o uso de produtos químicos, os desmatamentos, e sobretudo a escassez de água que estes projectos de extracção provocam[8]. "O consumo de água para a exploração mineira é insustentável num país onde este recurso vital já é escasso e pode causar sérios danos ou mesmo aniquilação das águas subterrâneas, com impactos na agricultura e infra-estruturas, tais como fissuras em edifícios e estradas", locais abordados num Manifesto[9].

Foram criadas não menos de 15 associações em todo o país contra estes projectos de extracção de lítio, envolvendo no total mais duas regiões: o Minho e a Beira Alta. No entanto, no meio do ruído crescente, ainda faltam estudos oficiais com factos e números: quantos hectares estarão incluídos nos locais de exploração (e quantos locais), quantas famílias e quintas estarão envolvidas, que metodologias serão adoptadas, quais serão os recursos utilizados, qual é o estado de progresso dos contratos já adjudicados...

Navegando no website de um dos operadores, a empresa britânica Savannah Resources[10] já localizada no norte de Portugal, são indicados apenas os números da quantidade de lítio extraído; no total, 285 900 toneladas de lítio. Se considerarmos que para 1kg de lítio, 1 tonelada de granito tem de ser perfurado [referência a uma emissão dos meios de comunicação alemães[11]], são feitos buracos imensuráveis no coração da Terra.

Com uma queixa à UNESCO de uma ameaça à integridade do sistema agro-silvo-pastoral na região norte[12], a batalha entre os habitantes das zonas rurais de Portugal e Lisboa já começou.

A 14 de Fevereiro de 2020, os agricultores desceram à capital para se manifestarem na praça pública enquanto o governo defendia repetidamente o respeito das normas ambientais e recordava que a exploração do lítio é, ironicamente, precisa "no interesse do ambiente para futuros veículos verdes[13]. Dez dias mais tarde, eclodiu uma epidemia global, que paralisou a situação. Subsequentemente, após sete meses, foi a Comissão Europeia que interveio em Setembro para apoiar o governo português, autorizando projectos mineiros de lítio, mas num diálogo com as comunidades rurais[14].

 

...UMA GUERRA PERDIDA DE ANTEMÃO?

Citação de um agricultor do norte, à Reuters, em Lisboa, em Fevereiro de 2020: "Estas empresas vêm com milhões [de euros]. O que podemos fazer com o nosso pouco dinheiro? Só podemos tentar detê-los". A leitura deste testemunho recorda a história de David contra Golias, sendo que aqui as comunidades rurais seriam David e a entidade capitalista Golias.

Que não haja mal-entendidos, os opositores dos projectos de extracção de lítio não estão a lutar contra o governo que permite tais explorações, mas sim para que o governo reveja a sua posição considerando o impacto negativo sobre a terra.

Como salientado por Marx, a vontade de acumular capital alimenta o desenvolvimento de forças produtivas industriais, o que ao mesmo tempo cria uma necessidade crescente de matérias-primas extraídas da terra para alimentar as máquinas. É como se, quanto mais se tivesse, mais se pedisse.

Assim sendo, onde terminam os esforços do capitalismo e começa a preservação ambiental? Por um lado, como Clark e York (2005) sublinham, o capital não pode funcionar em condições que exijam o reinvestimento do capital na manutenção da natureza; os lucros a curto prazo fornecem o impulso imediato do capitalismo. Por outro lado, Trás-os-Montes é a prova viva de que investir no ambiente pode ser um ganho garantido a longo prazo...

Na sequência de 1974, enquanto Lisboa se reorganizava com um novo governo recentemente libertado de uma ditadura de 40 anos, a região norte estava deserta deixando para trás os seus anciães e alguns rebanhos. Em geral, como observam Templeton e Scherr, a diminuição da densidade populacional pode levar não só à diminuição da frequência das colheitas, mas também "à cessação dos métodos de trabalho intensivo de reposição da fertilidade do solo, à negligência, abandono ou destruição das paisagens em socalcos e à erosão do solo, assoreamento a jusante e outras formas de degradação" (Hartmann, 2010).

A sobrevivência das terras em Trás-os-Montes foi assegurada graças a projectos agrícolas patrocinados pela União Europeia e à instalação de turbinas eólicas que hoje contribuem para tornar o país um líder no domínio das energias renováveis[15]. Para os transmontanos, o conceito de desenvolvimento sustentável não é apenas uma questão de imagem mas sim uma verdadeira força motriz que salvou a sua existência e o seu património.

O desenvolvimento sustentável liga fortemente as questões ambientais e socioeconómicas. Os transmontanos compreenderam-no e é por isso que desenvolveram ao longo dos anos produção de castanhas, cultivo de vinhas e de olivais. Na última década, a região conheceu 5% de crescimento por ano na exploração vitícola[16] e azeite foi comprado com reconhecido selo de excelência, mesmo apesar das consequências substantivas das alterações climáticas.

Desta forma, não só os projectos de extracção de lítio ameaçam o recente equilíbrio alcançado em Trás-os-Montes, mas destroem todas as perspectivas de renovação de mais uma década, se não de mais. Nenhuma civilização pode evitar o colapso se não alimentar a sua população (Ehrlich, 2013).

Por conseguinte, tal como a Comissão Europeia predisse em Setembro deste ano, existe uma mais-valia em falar com as comunidades rurais. O governo português precisa de considerar a “capacity approach” dos transmontanos. Holden et al. (2016) dizem que a “capacity approach” se concentra no que as pessoas são efectivamente capazes de fazer e de ser, ou seja, nas suas capacidades.

Além disso, a tarefa do governo português não se limitará à abertura do diálogo com as comunidades rurais, mas estará na partilha do poder da última palavra destes projectos de extracção de lítio. Segundo a Reuters, o lítio encontra-se em áreas classificadas e terrenos comuns onde os habitantes locais têm o direito de decidir como são utilizados.

De qualquer modo, as directrizes internacionais dizem que a participação requer um sistema político que assegure a participação efectiva dos cidadãos na tomada de decisões e, além disso, um sistema administrativo flexível e com capacidade de auto-correcção (WCED, 1987, em Holden et al.).

Até agora, os locais têm sido as "vozes baixas" que incluem as camadas pobres, a natureza e as gerações futuras. Enquanto as pessoas pobres têm uma voz baixa, a natureza e as gerações futuras não têm qualquer voz; são aquilo a que Meadowcroft (2012) se refere como "constituintes ausentes" (Holden et al., 2016).

 

Para concluir, o que a história de David e Golias ensina não é apenas que um pequeno concorrente pode ganhar, mas que as verdadeiras chaves para a luta são uma vantagem do tamanho de Golias. Quando percebemos que o ambiente e o desenvolvimento estão intrinsecamente ligados à sustentabilidade da população, o desafio não é escolher entre as duas variáveis para ganhar mais, mas sim para viver melhor.

Com esta questão do lítio, o governo português deve compreender que esta é uma oportunidade única para reinventar a sua sociedade e o seu futuro. Ehrlich (2013) diz que o maior desafio para evitar o colapso talvez seja convencer as pessoas, especialmente políticos e economistas, a quebrar este molde antigo e a alterar o comportamento em relação aos factores básicos de consumo da população, os factores de deterioração ambiental.

Em todo o caso, os transmontanos não se vão calar por detrás das suas montanhas... será que mencionei, que sou descendente de transmontanos?

Odet(t)e Pires

in The Hague, The Netherlands

Este texto foi Publicado em inglês no site académico Ideias para a Paz, 10 de Dezembro de 2020

 

REFERÊNCIAS

Cook, J., Oreskes, N., Doran, P. T., Anderegg, W. R., Verheggen, B., Maibach, E. W., ... & Nuccitelli, D. (2016). Consenso sobre o consenso: uma síntese de estimativas consensuais sobre o aquecimento global causado pelo homem. Cartas de Investigação Ambiental, 11(4), 048002

Clark, B., & York, R. (2005). Metabolismo do carbono: Capitalismo global, alterações climáticas, e a fenda biosférica. Teoria e Sociedade, 34(4), 391-428

Ehrlich, P. e Ehrlich A. (2013). Será possível evitar um colapso da civilização? Relatório do Simplicity Institute 13a: 1-19.

Hartmann, B. (2010). Repensar o Papel da População na Segurança Humana. In: Matthew, R.A.; Barnett, J.; McDonald, R., O'Brien, K. 2010. Mudança Ambiental Global e Segurança Humana. The MIT Press. Cambridge, Massachusetts. Londres, Inglaterra. Massachusetts Institute of Technology.

Holden, E., Linnerud, K. e Banister, D. (2016) The Imperatives of Sustainable Development. Sust. de Desenvolvimento Sustentável. Dev. Publicado online na Biblioteca Wiley Online (wileyonlinelibrary.com) DOI: 10.1002/sd.1647

Hopwood, B., Mellor, M., & O'Brien. 2005. "Desenvolvimento Sustentável": Mapeamento de Diferentes Abordagens". Desenvolvimento Sustentável 13: 38-52.

 

 

BIO DA AUTORA:

Odet(t)e Pires nasceu e foi criada em França, onde os seus pais emigraram de Portugal. Considera-se, portanto, uma cidadã europeia.

Depois de se formar em jornalismo em Paris, trabalhou numa estação de rádio pública nacional francesa e para empresas de produção televisiva antes de se juntar em 2016 ao Tribunal Penal Internacional (TPI), onde faz parte da Secção de Informação Pública e Divulgação. Especializada em produção audiovisual, Odet(t)e acompanha todos os processos de julgamento do TPI e produz nas duas línguas de trabalho do Tribunal, inglês e francês, resumos escritos diariamente em benefício de estações de rádio e televisão em todo o mundo.

Também cobre as actividades do TPI e eventos públicos em filmagens e edição de vídeos que são depois carregados e divulgados através dos meios de comunicação social, com vista a promover uma melhor compreensão do Tribunal.

No último ano, está também a realizar um mestrado em Paz Sustentável no nosso Mundo Contemporâneo na Universidade da Paz na Costa Rica.

Ela pode ser contactada em [email protected]

 


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