Encontravam-se todos de visita temporária aos
Estados Unidos, aproveitando o novo acordo de dispensa de visto concedido ao nosso país há cerca de dois anos. Ao que apuramos, todos estavam dentro do prazo legal de estadia autorizada (3 meses) mas a alguns deles faltava passaporte que tinham, aparentemente, deixado ao cuidado de António Morgado Trabalhavam ilegalmente para o empreiteiro António Morgado, emigrante natural das Furnas, São Miguel, proprietário de três empresas. Os indivíduos em causa faziam trabalhos diversos, mas à esmagadora maioria estava destinado trabalho de pedreiro. Os mais habilidosos (alguns tinham mesmo essa profissão) eram usualmente coadjuvados pelos menos entendidos, já que uma das empresas de António Morgado se dedicava ao levantamento de muros de pedra.

A queixa
Domingo (27 de Julho) à noite apareceu no aeroporto de Boston um indivíduo de nome Milton Silva, natural de Santa Cruz da Lagoa, ilha de São Miguel. Foi descrito com um indivíduo débil, um tanto tímido e aparentando um ar tristonho. Diz-se também que era um moço um tanto ‘atrasado’ (foi este o termo usado) o que desde logo suscitou muita compaixão por parte dos que com ele falaram e foram descobrindo o seu drama.
Milton pedia um lugar na SATA Internacional, mas não tinha dinheiro nem bilhete de regresso. Tentando ajudá-lo, o funcionário da Azores Express, que desde logo “adivinhou” a origem do problema, pediu-lhe para regressar na segunda-feira já que aquele voo estava completamente cheio.
Desolado, o Milton sentou-se no banco e chorava convulsivamente quando um rapaz brasileiro, funcionário das limpezas no aeroporto, lhe perguntou o que se passava. Milton contou-lhe que tinha vindo trabalhar para a empresa de um tal Morgado mas que tinha sido despedido sem dinheiro para o regresso e se encontrava sem dinheiro para comer. Acto imediato, o brasileiro levou-o para casa, deu-lhe alimentação e cama para dormir, comprometendo-se ainda a trazê-lo de volta ao aeroporto no outro dia a ver se tinha mais sorte.
Desta vez Milton teve mesmo mais sorte. A gerência da Azores Express, também no caso guiada pela compaixão do desafortunado Milton, ofereceu-lhe boleia de regresso a São Miguel.
Note-se, entretanto, que o seu anjo da guarda não se limitou a protegê-lo.
Militante de uma conhecida congregração religiosa dos arredores de Boston, chamou o pastor da mesma que se inteirou de tudo e chamou a estação de rádio WBZ de Boston. O resto, já disso démos conta, foi uma questão de chamar as entidades competentes que desde logo prepararam uma operação à quinta do Morgado, levada a efeito na madrugada de terça- feira.
Nesta, foram detidos 31 pessoas, sendo três delas postas em liberdade, já que se faziam acompanhar de visto concedido pelo consulado americano. Aos outros 28 foi dada ordem de prisão temporária por violação do tratado a que nos referimos no início desta reportagem.

Vilão ou herói?
Quinta-feira de manhã, graças à intervenção de Carlos Carreiro, dedicado funcionário da referida instituição prisional, conseguimos entrar em contacto com os visitantes (presos é um termo extremamante aborrecido) e alguns deles desde logo pediram o favor de entrarmos em contacto com as famílias, o que fizémos através de uma estação de rádio em Ponta Delgada.
Ironicamente, nenhum deles falou mal de António Mogado.
“Nunca me faltou com um tostão, foi sempre muito sério para comigo”, começou por dizer Humberto Carvalho, de 23 anos, natural de Vila Franca do Campo.
Carvalho confessou que sabia ter-se aventurado, que sabia que na sua situação não se podia trabalhar nos Estados Unidos, mas a necessidade a isso obrigou.
Confessou que devia 13 mil contos à banca de uma casa que tinha comprado e que se via à “rasca” para para acudir à dívida, sustento de uma mulher constantemente doente e de um filho de 2 anos.
Confessou-nos que teve semanas de ganhar quase mil dólares e que o Morgado sempre lhe pagou.
“É verdade que não vivíamos no melhor dos ambientes e a qualidade da alimentação também deixava muito a desejar mas nós também não viémos de nenhum paraíso. O que ganhávamos era suficiente para esquecer tudo”, finalizou Carvalho, ele que refere com mágoa que em São Miguel tinha de se contentar com o ordenado mínimo.
Steve Cardoso Soares, de 18 anos, nasceu em Toronto, mas o infortúnio bateu-lhe à porta quando andava ainda de fraldas. Aos 8 meses tem de
acompanhar os pais que foram deportados do Canadá. Rapaz musculado, forte, de aparência um pouco tacanha, começa por referir que a sua vida não tem sido um mar de rosas.
“Fui contratado pelo próprio Morgado e aceitei imediatamente. Eu não quero saber do que dizem, o Morgado foi um ‘gajo porreiro’ para mim e o resto são cantigas. Pagou-me sempre. Por acaso ficou lá com $1.600 dólares mas eu é que lhe tinha pedido para os guardar”.
Outros colegas fizeram o mesmo e ele deu sempre o dinheiro”.
Mas há muitos que se queixam dele, dissémos na esperança de saber se não abria a boca por medo ou por qualquer outra razão.
“É verdade, eu sei disso, e os meus colegas também sabem. Mas sabe uma coisa?
Esses, a quem ele não pagava, era porque eram malandros e nunca deviam ter saído de São Miguel. Achavam o trabalho pesado e escondiam-se para não trabalhar e depois queriam o ordenado no fim da smana. Uns malandros sem prestar para nada”.
Residente nas Furnas, Steve confessa-se agora muito desapontado, ele que nasceu no Canadá e um destes dias vai mas é viver para a terra onde nasceu.
“Não quero saber mais de São Miguel ou da América. Estou quase no Canadá”, disse com ar de quem tem o seu destino nas próprias mãos.
Para José Agostinho de Oliveira, natural da Covoada e residente em Santo António Além Capelas, este era um desafio que tinha de aceitar.
Marceneiro, de 26 anos, tem casa para pagar e família para sustentar.
“Nunca ganhei menos de $450 a $500 dólares por semana. Para mim isto dava um jeito muito grande e era uma boa oportunidade de endireitar a minha vida. As coisas não são tão fáceis em São Miguel como as pessoas por vezes as pintam.
Há muita necessidade e a gente tem que aproveitar estas oportunidades, até porque a pessoa que falou comigo já tinha tido uma experiência mais ou menos igual e tinha-se safado muito bem.”
Oliveira conta que o Morgado não lhe ficou a dever nada, apenas a semana que iriam receber na quinta-feira, e que na verdade as condições de alojamento e alimentação não eram as melhores.
“Mas, de resto, o homem nunca faltou à sua palavra”, disse.

Os contrastes Durante cerca de meia hora estivémos no meio de 28 homens resignados à sua sorte.
“Não fizémos nada de mal” ou “porque é que nos trouxeram para aqui”, foram as queixas que mais ouvimos.
Um deles, João Dinis, da Fajã de Cima, pediu-nos para telefonar à namorada.
Tem filhos?, perguntámos. “Éh senhor, é só cinco, queridos de cinco pequenos que estão lá minha espera”.
Um outro não tinha passaporte. “O Morgado ficou com tudo lá, se calhar estava com medo que eu fugisse mas eu queria era ganhar um dinheirinho”.
Para este natural de Ponta Garça a questão era saber quem o iria desenrascar, mas os outros logo o acalmaram lembrando que o cônsul e vice-cônsul de Portugal tinham já dado a sua garantia de que todos regressariam em paz aos seus lares.
Com efeito, o dr. Teles Fazendeiro, cônsul de Portugal em New Bedford, e o vice-cônsul José Canha tinham passado o dia anterior na prisão a tentar resolver o problema burocrático, ao mesmo tempo que iam dando as garantias possíveis em casos desta natureza.
Alguém aqui tem alguma coisa a dizer do Morgado?
“A única coisa que tenho contra ele é ter deixado que nos apanhassem nesta situação. Se sabe que não podíamos trabalhar devia ter-nos deixado na nossa terra” — ouviu-se alguém mencionar sem ter tempo de apontar o seu nome.
Alguns deles, porém, assistiram a cenas menos edificantes por parte do Morgado, que consideram um ditador.
Referiram-se aos tais casos de alguns colegas que não queriam trabalhar e de outros que não aguentavam o balanço.
Esta história e outras, que contrastam com o muito de mal que se tem dito do Morgado, viémos posteriormente a confirmar em Fall River, o que explicamos já a seguir.

Seabrook ali ao lado Nem todos os contratados de António Morgado foram apanhados na operação “pesadelo”, nome do golpe montado pelo FBI.
Muito próximo do local onde se encontravam os 31 detidos, estavam mais 8 indivíduos, quatro deles naturais de Santo António Além- Capelas. Avisados a tempo, esconderam-se e esperaram para que alguém os fosse buscar. Esperam agora vaga na Azores Express para regressarem ao convívio dos familiares.
Pedindo para não divulgar o seu nome, pelo menos enquanto por cá estivesse, um deles confirmou a versão de que o Morgado, longe de ser um ‘gajo porreiro’, cumpriu, na maioria dos casos, com o prometido. Mais, disse que quando se apercebia que queriam realmente trabalhar e ganhar dinheiro a sério tinha sempre um incentivo extra e a pelo menos dois destes moços referiu que se quisessem ficar mais algum tempo passaria a pagar $15 à hora, 5 a mais do que o contratado.
Confirmou ainda que na realidade o Morgado vivia com problemas diários mas que a maioria não eram criados por ele. Mencionou um indivíduo que era pescador e que na altura de ser contratado tinha dito que era pedreiro.
Chegado ao local de trabalho mal conseguia deitar uma pedra em cima da outra e no dia seguinte acabou por ficar a tratar dos porcos e das galinhas.
Há ainda casos de abuso e de noitadas cá por fora.
“Conheço alguns que deixaram as esposas e filhos em casa e quando recebiam o dinheiro era um tal correr atrás das prostitutas e da bebida. Esses não tinham condições para trabalhar e era a esses que o Morgado fazia a vida cara e despedia sem pagar”, disse.
Registámos outros relatos que por hora não interessa divulgar.
O facto é que há muita desta gente a defender o Morgado, fazendo dele um herói em vez de criminoso.
Postos ao corrente do facto de Morgado ter realmente incorrido em inúmeras situações ilegais, ao ponto de ter agora um processo judicial por parte do FBI e dos Serviços de Imigração, dizem apenas que: “esse não é um problema nosso”.
Outro problema que colocámos a um destes que estão em Fall River foi os porquês de não irem trabalhar para as construções no continente, já que em Potugal há milhares de estrangeiros exercendo a mesma função.
A resposta veio rápida: “há muito pior do que o Morgado em Portugal e lá não se ganha uma terça parte do que aqui nos pagaram”.

E agora?
António Morgado, para uns vilão, para outros um querido amigo, tem um problema sério entre mãos. Não é esta, no entanto, a primeira vez que se vê confrontado pela justiça, adivinhando-se entretanto que desta dificilmente se irá safar.
Criminoso, sim senhor. Exploração humana, fuga ao fisco, maus tratamentos, contratos ilegais e outros crimes de maior ou menor dimensão fazem parte do “dossier” deste homenzarrão que em meados de sessenta deixou as Furnas para ganhar a vida nos States, um país que o acolheu de braços abertos mas à chegada ficou logo sabendo que há regras do jogo a cumprir e quem não as cumpre arrisca-se obviamente a passar uma boa temporada à sombra.

Governo Regional dos Açores alertado para o problema

O Governo Regional dos Açores já havido sido alertado, em 2000, pelo Consulado de Portugal em New Bedford, para a situação de angariação de trabalhadores para virem trabalhar para os EUA em “condições confusas e sub-humanas. É o que se pode ler num esclarecimento da Direcção Regional das Comunidades que baixo divulgamos:
A Direcção Regional das Comunidades, face a algumas notícias vindas a público e relacionadas com a situação dos açorianos que foram detidos pelas autoridades norte- americanas, por se encontrarem a trabalhar ilegalmente,nos Estados Unidos, esclarece:
1. - No ano 2000, a Direcção Regional das Comunidades teve conhecimento, através do Consulado de Portugal, em New Bedford, de uma denúncia apresentada por dois cidadãos portugueses, residentes no estado de Massachusetts, àcerca de uma alegada situação de angariação de trabalhadores em São Miguel, para irem trabalhar e residir, na Améria, por conta de um empregador, em condições confusas e sub-humanas.
2. - A Direcção Regional das Comunidades deu conhecimento ao Presidente do Governo desta denúncia que, de imediato, seguiu para os serviços competentes do Ministério Público.
3. - No fim do ano de 2000, os serviços do Ministério Público do Tribunal Judicial da Comarca de Ponta Delgada remeteram à Presidência do Governo Regional dos Açores, para conhecimento, cópia do despacho de arquivamento daquele possível caso de angariação ilegal de trabalhadores açorianos para os EUA, por “os autos não revelarem indícios suficientes da prática de crime”.
4. - Do despacho do Ministério Público foi dado conhecimento ao Consulado dePortugal, em New Bedford.
5. - Desde então, não se registaram quaisquer outras denúncias formais ou informais que levassem à tomada de medidas por parte do Governo Regional dosAçores.
6. - A actual situação de 30 açorianos detidos nos Estados Unidos tem sido acompanhada de perto pela Direcção Regional das Comunidades, quer em contactos com o Consulado de Portugal, em New Bedford, quer com os serviços da Casa de Correcção de Dartmouth, quer ainda, em contactos com familiares de alguns dos detidos, e no mais absoluto respeito pela privacidade dos que pediram, expressamente, para que as suas famílias não fossem informadas da presente situação.



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