Há dois mitos lusitanos na hora de falar com indignação sobre emigração. O primeiro: Portugal é um país que só exporta «jovens cérebros». O segundo: os «jovens cérebros» estão a ser escorraçados só pela crise económica. Como bons mitos que são impedem-nos de perceber as razões mais profundas do atraso do país - e é por isso que precisam de ser desmontados.

Portugal não exporta só \"cérebros\" (o conceito habitualmente vago para designar uma pessoa licenciada). A emigração portuguesa é, ainda, dominada por pessoas com qualificações baixas. Os dados mais recentes do INE mostram que Portugal tem cerca de 1,2 milhões de licenciados. Por outro lado, estimativas de Álvaro Santos Pereira (sim, o \"Álvaro\") sugerem que entre 1998 e 2008 terão saído mais de 700 mil pessoas de Portugal. Como a tendência de saída nos últimos anos terá sido ainda maior, seria preciso que mais de 80% do total de diplomados neste país tivessem abandonado o país para que se pudesse alimentar a ficção de Portugal como um exportador exclusivo da mais fina porcelana intelectual. A clareza dos números é confirmada pela observação empírica de especialistas em emigração, como João Peixoto, investigador do ISEG. É importante destruir este mito porque nos permite recuperar uma imagem mais verdadeira do atraso educacional do país. Portugal é um país onde só entre 2006 e 2009 (!) o número de licenciados superou o de pessoas apenas com o ensino básico. O esforço de educação - uma educação exigente e adaptada ao mundo em que vivemos - continua a ser o maior desafio da jovem democracia portuguesa. O \"Portugal dos cérebros\" existe na cabeça das elites urbanas (pais e família da maioria dos \"jovens cérebros\") e dos políticos.

Mas quererá a destruição deste mito dizer que não há \"fuga de cérebros\" em Portugal? Não. Estudos da OCDE e de especialistas internacionais mostram que Portugal tem das taxas mais altas do chamado \"brain drain\" - cerca de 20% dos diplomados saem do país. Na OCDE só a Irlanda é pior. E a tendência tem vindo a aumentar: em 1990 a taxa rondava 14%. É verdade que uma década de estagnação seguida de uma recessão sem quartel funciona como um incentivo forte à emigração - e que parte do agravamento virá daí. Mas a crise serve para mascarar razões mais profundas da fuga de jovens qualificados em áreas de alto valor.

E assim chegamos ao segundo mito: sem a crise económica não perderíamos a nossa \"geração mais qualificada de sempre\". Não é verdade. Sem crise Portugal teria menos emigração jovem qualificada, mas mesmo assim sofreria uma taxa significativa de \"brain drain\". Joana Azevedo, investigadora do CIES/ISCTE, explica que em inquéritos feitos a jovens portugueses na Irlanda (alguns a trabalhar, por exemplo, na Google) percebeu que o desemprego não foi a causa principal de saída. O motivo foi a procura de uma cultura de trabalho mais centrada no talento, menos hierárquica e com mais gente boa, onde se pode aprender mais e ganhar um salário mais alto. As pessoas com mais impacto potencial na economia (o que restringe a definição do termo \"cérebro\") saem não tanto por falta de oportunidades em Portugal, mas por falta de oportunidades boas, criadas não só pela economia mas também pela cultura laboral e de gestão. Não há suficientes chefias boas a ensinar. A gestão é hierárquica e motiva pouca participação. Os salários são baixos e mal distribuídos face ao topo. As gerações que educaram os jovens com um foco excessivo na auto-estima dominam um ambiente de trabalho que hostiliza as expectativas emocionais e profissionais desses mesmos jovens.

É importante destruir o mito da culpa exclusiva da crise - ou dos apelos desastrados do governo - para perceber que o modelo de gestão português, típico de um sul da Europa pouco qualificado, nunca serviria para reter as pessoas melhores e para atrair jovens estrangeiros. É mais um sinal do nosso atraso estrutural. A mudança aqui é fulcral e levará tempo a ser acelerada - agora é esperar que aqueles que saíram (para aprender como se faz) regressem ao país.



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