Também guardei os três minutos de silêncio que os nossos políticos decidiram pedir-nos em memória das vítimas. Também senti arrepios ao ver as imagens daquelas torres que alimentavam os sonhos de fortuna e certificavam o american way of life. Também senti o horror dos milhares de vítimas soterradas nos restos dum símbolo da riqueza - morrer sob os escombros em Nova Iorque não é mais suave do que morrer em Belgrado. Não se morre mais feliz sob escombros de ouro e cristal do que sob as bombas. A morte violenta gratuita, tratada como trocos de cálculos políticos, religiosos ou comerciais, é barbárie em qualquer parte do mundo.
Por isso, nos meus três minutos de silêncio, que não foram os minutos de silêncio do meu governo, ou da aliança militar que me escolheram, ou dos falcões de todos os exércitos, pensei na contingência da paz num mundo de barbárie, na falta de sentido que tiveram os milhares de mortos levados a perdas e ganhos de interesses obscuros, em Nova Iorque ou no Iraque, no Ruanda como no Sudão, na Argélia como na Palestina, em Lockerbie como no Vietname, os mortos, enfim, deixados na passagem de forças armadas em busca de conquista imperial ou de bandos armados em busca de riquezas ou de influências, os mortos sacrificados na invocação hipócrita dum ideal religioso ou em nome duma civilização de contornos duvidosos - os judeus ontem, os novaiorquinos hoje, os muçulmanos sempre.
Pensei neles todos nos meus três minutos de silêncio e desejei, sem grandes ilusões, que ao menos as vidas perdidas provocassem um choque redentor, capaz de despertar da loucura os que ao mais alto nível regem os estados e os povos. Porque este devia ser o momento do sobressalto. Disseram-nos no auge da emoção que nada seria como dantes; e eu creio agora que será tudo como dantes: à barbárie continuará a responder-se com a barbárie, ao martírio de Nova Iorque responder-se-á com outro martírio, em Cabul ou em Bagdade, em Pristina ou em Jerusalém, em Belgrado ou em Beirute, porque os donos do mundo estão, de facto, loucos.
Dizem-nos que o ataque a Manhattan é um atentado da barbárie à civilização; e a civilização prepara-se para responder à barbárie com a barbárie. O povo quer vingança, dizem-nos, os média querem o espectáculo de bombas ao vivo para nos confortar na segurança dos nossos sofás, os condutores de opinião querem rapidez e eficácia. E neste jogo perverso começam por atropelar--se os mais fundamentais direitos da invocada civilização. Mate-se ou prenda-se primeiro, as provas virão depois; e quem não estiver de acordo com o coro dos vingadores tem de ser estigmatizado como cúmplice da barbárie. Eis o que se fez do livre julgamento, da livre consciência. Estado de direito? Onde isso vai! Investigação séria, julgamento imparcial e transparente? Não há tempo para tais detalhes. É muito mais fácil designar culpados convenientes e agir enquanto a raiva está quente. A barbárie é isto: é ser capaz de reagir à barbárie da mesma forma, é este espectáculo que temos visto ser pedido maioritariamente, admitido sem interrogações, programado nos media.
Vergonha de civilização! Civilização de vergonha!
No meio disto ouvem-se, discretas ou corajosas, algumas vozes de minorias, gente que pensa pela própria cabeça, que tem memória, que tem princípios. Princípios que não são os da manipulação mediática que governa o mundo. E quando, por uma vez, alguns políticos europeus dão um bemol para lembrar timidamente alguns valores, logo aparecem as oposições oportunistas, sedentas do poder, cães a dar ao rabo cada vez que o império os chama, a chamar-lhes medrosos ou a lançar sobre eles o opróbio da suspeita.
A política rendeu-se há muito aos negócios e às imagens - simbolicamente até o Pentágono foi menos atingido do que o World Trade Center. O poder é o dinheiro; o Pentágono, os presidentes de opereta, os ministros de capa de revista e telejornal das oito são meros serventuários, sem grandeza nem engenho. Quando a história lhes pede um assomo de dignidade em nome da civilização, alinham pela lógica da guerra, formam bicha atrás dum cow-boy que quer apresentar um adversário qualquer, vivo ou morto, que ainda não percebeu que o Bem e o Mal não cabem na sua escala de medida demasiado estreita, mas são a busca milenar de todos os homens de boa fé e alma limpa..
Hoje nem sequer tenho a força da raiva. Nova Iorque, o povo daquela cidade laboriosa que admiro mesmo nos seus exageros, o povo que é capaz de arregaçar as mangas para ir salvar desconhecidos; que abre a alma e a bolsa para sarar as feridas, aquele povo não merecia tal punição. Nem como vingança de outros sofrimentos, de outras lágrimas, de outras dores, espalhados pelo mundo por aqueles que o dirigem, e por aqueles que já hoje, com os mortos ainda debaixo dos escombros, já se perfilam na mesa dos subsídios para reconstruir as fortunas ou as partes de mercado. Hoje lembro todos os que foram vítimas do terror, do fanatismo ou do terrorismo de Estado. Sinto-me irmão de todos eles, americanos ou africanos, judeus ou árabes, europeus ou timorenses, chineses ou russos.
O meu 11 de Setembro era marcado há vinte e oito anos pela memória do assassinato do presidente Salvador Allende, noticiado numa primeira página vermelha dum vespertino de Paris onde se dava conta do golpe de estado fascista. A partir deste ano terá outro marco: a tragédia de Manhattan. E em ambas as efemérides se me impõe um poema de Neruda, o poeta que, ante a barbárie que lhe marcava os últimos dias de vida, ainda tinha a lucidez da esperança, ao anunciar que em breve se abrirão as largas avenidas por onde passará radiosa a humanidade.
...A noite subiu ao monte,
A fome desceu ao rio,
Vem comigo!
Quem são os que sofrem?
Não sei, mas são meus!
Vem comigo!
Fernando Gouveia