A crise desencadeada na Geórgia no início de Agosto, em vésperas de Jogos Olímpicos, deveria fazer-nos reflectir um pouco para além das paixões momentâneas, das verdades estabelecidas sem contraditório, dos interesses inconfessáveis dum Ocidente cada vez mais à deriva, guiado por um poder cada vez mais unilateral, mais cego e mais belicoso.
Sabia-se (ou podia adivinhar-se), desde o reconhecimento por alguns países ocidentais da independência do Kosovo, em flagrante violação da integridade territorial da Sérvia e, logo, da Carta das Nações Unidas e da pragmática das relações internacionais que prevaleceu depois da guerra fria, que a Rússia via esse reconhecimento como um passo mais na estratégia de conquista da OTAN, liderada pelo antigo rival e agora única superpotência militar. Moscovo avisou, na altura, que o precedente do Kosovo podia desencadear acções paralelas unilaterais de outras nacionalidades em crise com os Estados em que estão integradas, e não foi por acaso que países com problemas de nacionalismos emergentes não reconheceram essa independência.
O manto do silêncio desceu sobre o Kosovo e sobre a sua independência artificialmente criada, reconhecida e amamentada por um grupo de amigos, em que se destacam os Estados Unidos da América e alguns países europeus. E foi precisa uma nova provocação à Rússia e a imediata resposta russa para que nos lembrássemos, meia dúzia de meses depois da provocação do Kosovo, de invocar o direito dos Estados à sua integridade territorial. E então, os que fizeram o mal fazem agora a caramunha, berrando aos quatro ventos que vêm aí os russos! Para demonstração de hipocrisia política, o exemplo não podia ser melhor. Condolleza Rice, em fim de mandato num governo que representou nos últimos oito anos a maior ameaça à paz em todo o mundo, declara, em resposta a uma jornalista, em Lisboa, que o Kosovo é diferente da Geórgia, mas dispensa-se de indicar as diferenças.
Evidentemente, o Kosovo é diferente da Geórgia, porque a situação política na Ossétia do Sul e na Abkhasia, resultante da desintegração da União Soviética, tornava mais que duvidosa uma soberania georgiana que, de facto, nunca foi exercida. A Ossétia, por exemplo, foi república soviética integrada administrativamente na Geórgia durante a existência da União Soviética, mas a própria Geórgia não tinha então soberania própria. Antes da integração na URSS a Ossétia fazia parte do império dos czares. A fragilidade da soberania georgiana na Ossétia era mais que evidente: após a desintegração da URSS, a Ossétia nunca aceitou o governo da Geórgia e governou-se sempre autonomamente. E a própria Geórgia aceitava qie a questão estava em aberto, dependente de negociações que sistematicamente adiou. O Kosovo, pelo contrário, faz parte do território da Sérvia há séculos e, mesmo após a desintegração da Jugoslávia, só reivindicava até há pouco tempo o respeito da sua autonomia administrativa. A oferta da independência a um território acaparado por um misto de naciolistas a traficantes albaneses foi uma violação flagrante do direito internacional.
O US made presidente Sakashvili, certamente confortado pelas centenas de conselheiros militares americanos e armado por eles, entendeu que podia resolver o problema da Ossétia com uma espécie de blitz krieg (guerra relâmpago), confortando ao mesmo tempo a sua débil posição interna e dando uma ajuda na campanha republicana nos EUA. Mandou um exército invadir o território, destruir casas e populações sobre as quais reclamava soberania. Enganou-se em dois pontos: nem os russos estavam dispostos a tolerar mais uma provocação, nem a Europa, apesar dos lindos discursos de apoio e gesticulações histéricas na direcção da Rússia, podiam fazer nada de útil para o ajudar a saír do precipício em que ele próprio se lançou.
Apesar de os ocidentais e a imprensa que serve os seus interesses ter invertido a imputação das responsabilidades, culpando a Rússia duma crise a que os russos se limitaram a dar resposta, os factos são agora transparentes : há, por um lado, o Kosovo e, por outro, dois novos Estados autoproclamados que, mais cedo ou mais tarde, depositarão nas Nações Unidas os processos de candidatura ao reconhecimento internacional como Estados soberanos. Cada parte com os seus apoios que, não sendo numerosos, são suficientes para criar um impasse político através do veto no Conselho de Segurança. Veremos quais os argumentos que podem convencer. Mas não serão certamente os argumentos de direito internacional, já que esses, como pudemos ver, todos os mandam às urtigas quando está em causa o seu próprio interesse estratégico.
Estou convencido de que, a médio prazo, tudo se resolverá colocando na balança dos interesses o abastecimento de gás à Europa, algum compromisso estratégico quanto aos mísseis na Europa de Leste, um adiamento das pretensões duma parte da Ucrânia e da Geórgia a entrarem na OTAN e engolindo muitos insultos que a real politik acabará por fazer esquecer.
Bem pode Sarkosy proclamar que Yalta acabou! O pior cego é o que não quer ver. O direito que governa o mundo ainda é o que resultou de Yalta, apesar das facadas frequentes que tem levado dos actuais amigos de Sarkosy. E não será fácil acabar com o sistema actual enquanto houver uma aliança militar que pensa poder ser a polícia do mundo.
Os russos vêm aí! E o mundo diz: Felizmente!