Manuel Igreja

Manuel Igreja

Um Conto de "Bô Ano"

Um comprido madeiro retirado da sua função secular de trave mestra da casa há pouco tempo remodelada estendia-se deitado junto à parede da capela situada no outro lado da estrada.

Era nele que o velho estava sentado como seu costume, desta vez a conversar com um homem de meia-idade de passagem costumeira pela aldeia natal sempre que os afazeres na cidade grande lho permitiam.

Quando assim era, não perdia oportunidade para reviver peripécias dos seus tempos de menino e moço, ou para ficar a conhecer as estórias do arco-da-velha que o seu velho amigo lhe contava.

Em certo momento do diálogo quase monólogo, dizia-lhe então o narrador incansável sempre em jeito de quem é dono de todo o tempo do mundo:

- Olhe meu amigo; sempre fui homem de armazém. No entanto, garanto-lhe que nunca ninguém me viu pingueiro ao ponto de dizer ou de fazer tolices. Como sempre granjeie vinhas que trazia que nem jardins, tive sempre uma ou duas pipas de vinho do bom na adega. Parte dele era para os amigos beberem, e olhe que nunca me faltou que mo bebesse. Qualquer pessoa daí lhe dá fé de que não havia vivalma que passasse e não molhasse o bico. Mas sempre sem se passar dos limites…

- Nunca lhe faltaram amigos nem tino, que o senhor dizer.

- Nem mais. Isto sem que não lhe diga que por vezes as cabeças bem andavam à roda e bem quentes.

- Ou aguentava muito, ou bebia pouco…, digo eu.

- Está a brincar. Mas brinque, brinque que não me apoquenta. Já que estamos com o Ano Novo à porta, deixe que lhe conte um sucedido já há um ror de anos.
Acontecia que eu e mais um punhado de comparsas daqueles de detrás da orelha, depois da ceia de consoada do dia 31 que era quase igual à do dia 24, ia-mos para o meu armazém passar a meia-noite. Sem as mulheres que essas nestas coisas só estorvam, com as devidas desculpas para elas que são umas santas.
Por essa altura era costume ter o reco acabadinho de matar, e agarrava numas febras do lombo ou da pá, para fazermos uma verdadeira patuscada daquelas à antiga. Jogávamos umas cartas, cantávamos umas modas, e falávamos dito e daquilo com o vinho ali sempre à mão-de-semear na torneira da pipa. Nem lhe conto. Era um regalo.

- Devia ser, devia. Um espanto é o que era…

- Garanto-lhe que era. Mas de deixar qualquer cristão de boca à banda, é o que lhe vou contar se fizer o favor de me escutar. Caso tenha tempo, claro.

- Esteja à sua vontade, pois o tempo dá-o Deus de graça.

- Felizmente que dá ainda que muitos o esqueçam. Bem, num certo ano, estávamos a meio da função ainda sem que o Serafim tivesse aparecido, quando alguém nos bate à porta. Era ele que se tinha atrasado como lhe disse, e que estava acompanhado com três figuras vestidas assim como que com uns mantos e umas toucas nas cabeças. Todos montados em camelos, bichos nunca por aqui vistos….

- Conversa. Não acredito. Desculpe o atrevimento, mas há-de concordar que é estranho…
- Espere. Espere e oiça que vale a pena. No princípio, também esfreguei os olhos. Segundo o Serafim, ao vir para cá, no caminho da missa, que ainda existe, e que começa logo a seguir à Igreja, onde antes havia uma eira em que se malhava o trigo, disse ele, apareceram-lhe aqueles três a perguntar se sabia o caminho para Belém onde iam de jornada.
Futurando ser brincadeira de Entrudo adiantada no tempo, disse-lhes que sim, e perguntou-lhe se já tinham ceado. Como lhe responderam que não, trouxe-os para a nossa beira.

- Continue que estou a gostar e sempre quero ver onde a coisa vai dar.

- Pois já vai ver e não tarda nada. Sempre desconfiados, recebemo-los de braços abertos. Entraram e participaram tal e qual como nós. O Serafim que tinha uma burra foi buscar um punhado de palha para os animais dos nossos hóspedes. Não sei se lá na terra deles também a há, mas o que lhe garanto é que até se lamberam. Consolaram-se tanto como nós e como os seus donos…

- Quer dizer, uns a comer uma coisa e outros a comer outra coisa…, estou que nem posso.

- Gasta de brincar. Mas faz bem. Faz bem. Mas creia-me que foi assim como lhe disse. Aos animais só lhe faltou o vinho. Por falar nisso, só lhe digo que a pipa levou um rombo que eu sei lá. Eram umas espojas, os tais…

- Só lhe falta dizer que eram os Reis Magos.

- E eram. Não afianço completamente, mas o que lhe digo com toda a certeza, é que um deles até tinha a pele mais escura e tudo. Mas seguindo: Comeu-se e bebeu-se até se lhe chegar com um dedo…

- Deve ter sido bonito!

- Foi sim senhor, O cabo dos trabalhos foram montá-los de novo nos camelos. Pareciam sinos a virar. Nem têm conta aas vezes que caíram. Foi um riso. Olhavam para cima, para o céu, e diziam que viam três estrelas e que iam seguir a do meio.

- Não me faça rir.

- O que lhe digo, é que foi do melhor aquela noite. Fartaram-se de falar lá aos tais. Disseram coisas de muito admirar. Sabe. Falaram de coisas de outras eras como se tivessem acabado de acontecer, falaram do mal dos homens e das asneiras que temos feito, e que é pena que a gente nem sempre se lembre que somos todos irmãos. Garantiram que o mundo seria bem melhor se a humanidade fosse mais humilde e se usasse a sua inteligência só para o bem, e espante-se, falaram de coisas ainda não acontecidas mas que depois vimos acontecer. No meio da conversa, disseram-nos para não perdermos a esperança nem a capacidade de lutar, pois para se conseguir alguma coisa, é essencial que se acredite. Disseram mesmos que o impossível não existe.

- Fala a sério?

- Falo sim caro amigo. Ao despedirem-se desejaram-nos “Bô Ano” a todos e olhe que não nos pudemos queixar face ao que se vê por esse mundo de Deus afora.
Mas vejo na sua cara, que não acredita no que lhe conto. Não lhe levo a mal, pois nem eu sei se aconteceu mesmo. O que me lembro é que quando acordei ainda no armazém, nem sabia de que terra era. A coisa foi de caixão à cova como se dizia antigamente.

Já agora, desejo-lhe um “Bô Ano” para si para os seus.


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