Ana Soares

Ana Soares

Um confinamento muito desconfinado

Entrámos hoje, supostamente, num novo confinamento atenta a pandemia que nos assola que, na última semana, atingiu números impraticáveis e a que só consegue ficar indiferente quem não valorizar a dignidade humana e a própria vida: muitos dias com mais de 10.000 novos infectados e outros tantos com quase 150 mortos a lamentar.

Estes números, associados à estrangulação a que está sujeito o SNS, levaram-nos a um novo confinamento que quase todos, ainda que discordando em alguns detalhes, viam como indispensável. No entanto, aquilo com que nos deparamos – que só com muito boa vontade pode ser chamado de confinamento – é desvalorizar o esforço que a população tem feito nos últimos dez meses e brincar à política. Governar exige tomada de posições, muitas delas difíceis e impopulares, outras quase consensuais e outras ainda que são fonte de popularidade. Na actual circunstâncias, em que as medidas necessárias iriam sacrificar economicamente o país, exigia-se coragem, clareza e pragmatismo. Coragem para tomar as medidas efectivamente necessárias para abrandar o ritmo pandémico. Clareza para que não haja entrelinhas ou excepções que deitem as regras fundamentais para a rua da amargura. E pragmatismo, porque mais valia (em termos socio-económico e do sistema de saúde) tomar medidas duras mas eficazes, que penalizassem a economia por menos tempo, do que andar com medidas a meio-termo, que a todos penalizam mas cujos objectivos de travar a pandemia quase necessariamente serão impossíveis de alcançar.

Sou jurista e não caio em populismo de negar que qualquer legislação – ainda mais uma tão regulamentada como o Estado de Emergência – tem que ter excepções, mas neste caso exigiam-se excepções que fossem poucas e essenciais, não que tornassem injustificáveis os sacrifícios que se estão a exigir a milhares e milhares de negócios, a milhões e milões de portugueses. Também enquanto jurista, sei que seria inconstitucional adiar as eleições presidenciais, mas sinto-me revoltada quando as mesmas já estão calendarizadas (ainda que não o dia em concreto) há já 5 anos, sendo que, pelo menos há 10 meses, se podiam ter começado a organizar de forma conveniente ao actual contexto, com voto desfasado ou por correspondência, a título de exemplo.

Sou favorável a um confinamento total, pelo tempo necessário (que mesmo com as medidas apropriadas dificilmente acredito que fosse menor de 4 semanas), mas não a esta fantochada que estamos a viver (peço desculpa, mas nunca fui muito dada a eufemismos), que é gozar com aqueles que já perderam ou estão em perigo de perder os seus empregos ou negócios, aqueles que há meses tentam arranjar solução para os filhos não caírem nas malhas deste vírus ou que tentam multiplicar-se para viver com o dinheiro que lhes restou e chegar a tudo e a todos, para proteger os familiares mais desfavoráveis, aqueles que vivem com a solidão imposta a quem vive em lares, já para não falar dos profissionais de segurança, saúde, serviços públicos essenciais e tantos outros a quem tem sido exigido um esforço hercúleo, com jogos de futebol para agradecimento, que é como quem diz continuem a trabalhar e a dar tudo por tudo que nós cá continuaremos a não assumir as responsabilidades que temos e a não tomar as medidas que se exigem e para as quais fomos eleitos e recebemos vencimento ao fim do mês.

Não Senhor Primeiro-Ministro, as escolas não são lugares seguros. Não há ninguém que faça parte da comunidade escolar, seja em que parte do país for, que não lhe saiba apontar crianças em idade escolar em isolamento ou casos positivos e lhe diga que os isolamentos deveriam ser maiores, abrangendo turmas e não crianças isoladas. É verdade que a grande maioria das crianças são – felizmente – assintomáticas, mas são conhecidos (ainda que pouco estudados para já) os números de infecções e nível de transmissibilidade nas crianças da nova variante que já existe também em Portugal, isto sem desvalorizar o papel que têm também na difusão da variante “primária”. E não é papel dos Pais proteger as crianças e do Estado, ou a Constituição da República Portuguesa só deve ser respeitada quando dá jeito? Bem sei que fechar escolas exige outro tipo de apoio às Famílias, mas esse valor poderá ser, pelo menos parcialmente, recuperado no apoio às empresas que deixará de ser necessário por tanto tempo se o confinamento for eficaz e, por conseguinte, mais curto. E não reduza a questão a que é preferível o ensino preferencial ao ensino à distância, pois imagino que poucos o discutam, eu desde logo que não o faço. Mas não estamos a falar numa situação normal, mas num contexto verdadeiramente excepcional.

Até porque, importa recordar, que nas escolas há também professores, auxiliares e demais profissionais que continuam a ir diariamente trabalhar, mas a quem é dito para não estar com outros familiares (como netos e sobrinhos) para não haver contactos fora da bolha do agregado familiar. Mas… então onde fica o dever de confinamento geral? Pelo menos que fosse chamado dever de confinamento parcial para estar de acordo com o que foi estabelecido.

E o mesmo que é dito quanto às escolas tem que ser assumido quanto a muitos dos negócios que estão abertos. Há que haver regras claras: não podem ser colocados em causa os bens essenciais, mas é ridículo sair e ver a grande maioria dos cafés abertos. É ridículo que seja, mais uma vez, a Igreja Católica (digna de aplauso, na minha opinião) a restringir os momentos de culto e a proibir celebrações que, por tradição cultural, reúnem mais pessoas e que pelo Governo continuavam a ser permitidas. E tantos e tantos exemplos mais que poderia dar.

Não estamos em período de meias verdades ou meios confinamentos. Estamos a atingir o limite, e se o Governo assumiu que isto poderia acontecer quando resolveu não limitar o período de Natal, é este o tempo de agir e correr atrás do prejuízo. Já não estamos a falar da hipótese do SNS (e até com a ajuda dos privados) chegar ao limite, já está a acontecer. Não estamos a prever que o tão falado “R” ultrapasse o valor da unidade, já está a acontecer, tal como as cadeias de transmissão na sociedade – sejamos claros – já não estão a ser passíveis de circunscrever ou seguir por equipas de saúde pública que dão o seu melhor, mas que são insuficientes para os números actuais.

Em política não é comum reconhecer erros. Mesmo para o confinamento, esperámos mais quatro ou cinco dias depois de ser evidente que o mesmo era uma necessidade, com custo para tantos e tantos cidadãos. Pois que isso não seja um entrave neste momento. Corrijam-se as medidas já, não daqui a duas semanas, fechem-se as escolas, reduzam-se os serviços públicos essenciais mesmo ao que é fundamental, fechem-se negócios que não são básicos. Porque não é discutível se é necessário, é inegável. Façam-no, e já, em nome do primado da vida humana e do respeito que todos merecemos.


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