Não! Não se trata aqui de evocar a fórmula revolucionária da Reforma Agrária. O que me inspira este título não é qualquer apologia da colectivização ou nacionalização das terras, mas apenas uma reflexão sobre o publicitado relatório da União Europeia relativo à agricultura portuguesa. Nele se diz, a dar crédito à imprensa, que os últimos vinte anos foram anos perdidos e que os problemas de que sofria a nossa agricultura à data da adesão às Comunidades são exactamente os que continuam hoje a existir.
Ora, isto acontece num momento decisivo para o futuro da Política Agrícola Comum (Pac) tal como a conhecíamos. Efectivamente, decorrem as negociações nas instituições comunitárias para a reforma dessa política, de forma a substituir a filosofia que lhe estava subjacente, de apoio à produção, por uma nova filosofia, de apoio às unidades agrícolas ou aos agricultores.
Será que a culpa do atraso da agricultura portuguesa se deve à Pac, como muitos afirmam, alijando dalguma forma responsabilidades próprias, ou será que simplesmente a Pac não podia fazer o milagre de transformar a agricultura portuguesa corrigindo os seus atrasos crónicos e estruturais?
Na minha opinião, a Pac não é a principal culpada dos nossos males, mesmo se podia ter contribuido, através essencialmente do FEOGA Orientação, para uma desejável reestruturação agrária a para a formação profissional dos agricultores. Infelizmente todos sabemos que os fundos estruturais não tiveram a utilidade que deles se esperava, se exceptuarmos o bom desenvolvimento de estruturas básicas financiadas pelo FEDER.
Mas não tenhamos ilusões: os atrasos da nossa agricultura são seculares, têm que ver com o atraso global do país e dos portugueses e este défice resulta da crónica escassez de investimento na educação, na inovação e na formação profissional. Salvo raras excepções, a agricultura portuguesa chegou ao século XX com estruturas medievais, com tecnologia medievel, com agricultores medievais. A mecanização que se desenvolveu a partir de meados do século não podia, por si só, fazer milagres e limitou-se a responder à escassez de mão-de-obra provocada pela guerra e pela emigração. O resto dos elementos do sector continuaram arcaicos. Até o investimento em formação de técnicos em escolas médias e superiores se perdeu frequentemente com esses técnicos a ganharem nos gabinetes da burocracia os proventos que deviam arrancar da terra.
Quando aderimos à CEE, a agricultura europeia já se defrontava com os vícios da Pac. Esta fora instituída nos anos sessenta para tornar a Europa autosuficiente em produtos agrícolas estratégicos, essencialmente os cereais, a carne e os lacticínios, mas o seu sucesso veio a mostrar-se preverso. A garantia de um preço e dum mercado para as produções abrangidas por organizações comuns de mercado levou a uma empresarialização acelerada da produção, eliminando das terras a maioria dos agricultores, alguns deles obrigados a proletarizar-se nos arrabaldes industriais das cidades. Nos anos oitenta, falava-se das montanhas de manteiga, nos rios de leite e nos milhões de toneladas de carne produzidos para a armazenagem por conta da intervenção comunitária, sem hipótese de escoamento no mercado mundial. Por essa altura, a agricultura absorvia mais de sessenta por cento do orçamento comunitário e a situação tornava-se insustentável. Os comportamentos aberrantes fizeram escola, como o despejo de leite nos rios, a engorda de animais com os produtos armazenados e traficâncias de toda a ordem. O produtivismo acarretou o uso exagerado de fertilizantes que poluíram rios e mesmo a costa marítima, o uso de hormonas proibidas, chegando a haver num país o assassinato dos inspectores sanitários que inquiriam sobre o respectivo tráfico, práticas de produção que conduziram a epidemias como a doença das vacas loucas.
A empresarialização levou a que a agricultura passasse das mãos dos agricultores para os grandes grupos económicos, liderados por quem nunca pôs os pés na terra, mas perito no manusear de subsídios e contabilidades engenhosas. Passou-se, pois, a uma agricultura sem agricultores. Quem viaje um pouco por algumas dessas regiões de latifúndio, como o Vale do Marne e a maior parte do Norte da França, vê uma imensa paisagem deserta, aldeias fantasmas abandonadas no meio das explorações; hectares e hectares de plástico transformaram numa paisagem caótica todo o sudeste de Espanha, cobrindo todas as planícies e encostas entre a Serra Nevada e o litoral de Almeria: a mesma desolação humana, a mesma lógica da agricultura sem homens.
Ficaram bem conhecidas da opinião pública as maratonas do Conselho de Ministros da Comunidade, pela noite dentro, para fixarem anualmente os preços de intervenção, normalmente acossados por milhares de tractores a camiões. Portugal entrou na euforia dos subsídios às mesmas produções, esquecendo-se que muito dificilmente poderíamos competir nesse terreno. Abandonou-se então, a favor das subvenções chorudas a uma minoria de grandes agricultores, a especificidade da agricultura portuguesa. E é agora que se vem clamar essa mesma especificidade, admitida a meia voz pelo Conselho da União, sem quaisquer consequências práticas. A agricultura portuguesa tem vertentes específicas (grande parte em minifúndio, culturas tradicionais de elevado valor, como a castanha, a azeitona, o vinho, as frutas e legumes, a pecuária artesanal), mas já assim era há vinte anos. Na altura, o governo não foi capaz de o fazer reconhecer e agora será muito tarde. Mas, por isso mesmo, é que a nova proposta da Pac deve ser discutida pelos agricultores portugueses. É que a nova filosofia pode, de facto, aproveitar aos pequenos agricultores, aqueles que até agora foram sacrificados no altar do produtivismo. É que o subsídio às explorações, em vez do subsídio à produção, pode permitir salvar o que resta de agricultores tradicionais, para quem a terra é mais que um modo de vida, é a razão e a génese da própria vida. Pode permitir valorizar o agricultor em vez do balanço da empresa e evitar a mentira e o jogo sujo dos preços e dos mercados artificiais.
A avaliar pelas reacções dos políticos nacionais, a mudança é temível. Será porque toca nos interesses dos poderosos que têm pesado nas decisões?
A nossa região, de minifúndio, andaria bem avisada se reflectisse nisto e estudasse as hipóteses de, ao menos uma vez, aproveitar uma proposta, porque, para o bem ou para o mal, ainda somos uma região essencialmente rural, em que a terra ainda conhece o dono que a trabalha.
Junho 2003