Juro pela minha rica saúde, que vicio de fumar, é coisa que nunca senti, ainda que de oras em quando não negue e me saiba bem expelir o fumo de uma cigarrilha, ou até de um simples cigarro, tenham eles a marca que tiverem que eu não sou esquisito. Isto, só para dizer que estou à vontade para me posicionar um pouco do lado daqueles a quem custa resistir aos efeitos da nicotina, e a estar bastante contra aqueles que agora de um momento para o outro deram em turrar com alma que se atreva a meter cigarro na boca.
Mais parece que de repente alguém decretou que se deve morrer saudável, e por essa via logo todos se apressaram a rotular de indesejáveis e quase de criminosos os que não adiram ao novo fundamentalismo higiénico. De um momento para o outro, o cumprimento da lei passou a ser a prioridade das prioridades por todo o país, de repente surgiram a cada esquina da rua zelosos vigilantes que de nariz no ar, buscam os odores de tabaco queimado, não hesitando em apontar o dedo ao incumpridor com gestos e atitudes que só não levam à fogueira da inquisição porque esta já não existe pelo menos em termos físicos, que nos mentais ainda ela arde qual lume em palheiro velho.
Caiu-se pois quanto a mim pelo menos, num exagero ridículo e doentio, neste país especialista em fugir às leis, e onde uns poucos ganham largos milhões a estudar e a recomendar publicamente formas de as contornar. Ainda elas não estão publicadas, ainda elas germinam nas iluminadas cabeças dos legisladores, e já se encontraram usualmente truques para as dealbar com toda a gabarolice tão saloia como isenta de sentido cívico.
Só esta, se calhar porque incomoda muito o estimado colega e o amigável vizinho, ganhou milhões de zeladores, que numa verdadeira canseira logo gritam “aqui d’el rei”, ou “agarrem-no que é criminosamente inconsciente e quer-se matar e a mais aos que com ele se cruzam”.
Obviamente que não defendo que os cidadãos que fumem transformem os locais fechados onde põem os pés em verdadeiros sítios onde se pode fazer carne de fumeiro como acontecia frequentemente antes, mas daí até chegarmos ao ponto a que chegamos por causa desta lei copiada lá de fora, vai uma grande distância. Defendo o ar puro, porque gosto de o respirar e sei que faz bem à saúde, luto dentro do que posso e sei por um ambiente melhor para deixar em herança aos meus filhos um planeta no mínimo igual ao que encontrei quando vim ao mundo, mas não entendo que num país onde quase ninguém em termos cívicos se preocupa com as agressões diárias que se lhe infringem, muita gente venha agora porque é fácil e porque é moda, atirar a primeira pedra aos que fumam.
Os benditos automóveis podem aos milhões largar veneno para os nossos narizes, os esgotos podem correr sem tratamento para os rios, as industrias podem poluir à farta, mas ninguém se incomoda, até porque semelhante incómodo daria muito trabalho tantos aos eleitores como aos eleitos. Mais fácil, é mostrar preocupação e fazer de conta que se age, e para isso nada melhor e mais fácil que escarrapachar no papel uma lei que com toda a facilidade se impõe sem apelo nem agravo.
Devíamos viver num mundo e num país onde os comportamentos individuais não necessitassem de leis nem de regras impostas, porque cada um seria capaz de ter a noção dos seus limites e das consequências directas das suas acções. Mas não vivemos assim nem de longe nem de perto como bem sabemos e com culpas para todos. Na ausência de formação individual e da cidadania plena, imperam as leis que devem ser sempre equilibradas, mas por vezes algumas nem sempre o conseguem ser.
Esta é bem o caso de uma. Passámos por isso do oito para o oitenta repentinamente, e acendemos inexoravelmente o inquisidor adormecido em muitos de nós. A mim que não fumo, isto confesso que me irrita um pouco, e só para fazer pirraça, ás vezes apetece-me andar por aí de cigarro apagado na boca e a perguntar com uma ponta ironia: Por favor, tem lume?