Se não fosse a crise financeira, já por esse país fora andariam as pessoas em roda viva a clamar pelos direitos que mais jeito dão a uns ou a outros, todos convencidos de que a sua razão deve esmagar a razão dos outros. E não é caso para menos: a crise da instituição do casamento não é matéria recente, mas o que é novo é que numa mesma semana dois projectos de lei vêm pô-la de novo na ordem do dia. Por um lado, as alterações à lei em matéria de divórcio; por outro, a proposta de alargar o casamento a uniões entre pessoas do mesmo sexo.
Devo confessar-me um pouco à margem dos detalhes das propostas (a respeitante ao divórcio já aprovada), mas nem isso me parece assim tão importante, pois o que me leva a reflectir são as motivações profundas de tanta inquietação legiferante. O que implica alguma meditação sobre o casamento, a sua história, os valores que o enformam, e as novas formas de organização das relações sociais, muito especialmente das relações de duas pessoas que ultrpassem as regras de cortesia e dos contratos civis, para entrarem no domínio do afectivo e da comunhão doméstica.
O casamento pode ser o evocar duma longa história que remonta à criação do mundo, pelo menos para os que acreditam na criação, iniciada pelo episódio da criação de Eva para companheira de Adão, como se narra no Génesis. Para os que não crêem na criação, sirva o episódio como símbolo, como metáfora duma possibilidade de Humanidade: um casal dotado de capacidade superior de raciocínio, dono de todas as coisas do mundo, que então não eram muitas, com ordem expressa para se reproduzirem e povoarem a terra, e com uma única limitação: não comer o fruto da árvore da sabedoria. Sabemos do resultado: bastou uma pequena tentação externa da serpente e a bela inocência primitiva foi às urtigas, com a consequência de passar o género humano a tratar de si mesmo, a comer o pão com o suor do seu rosto, sujeito à dor, à fome, à doença, e a todas as contingências de viver num mundo perigoso.
As coisas não mudaram muito desde esse tempo mítico, o que prova que o episódio, como parábola, pode perfeitamente adaptar-se a todas as épocas. O belo sonho dum casal feliz, construído ao som de trombetas e profusão de véus de noivado e flores de laranjeira – e condimentado nos nossos dias com luxuosos banquetes a que correspondem chorudas prendas – encontra cada vez mais dificuldades para frutificar em felicidade vitalícia. A vida é assim, as tentações são muitas, as funções do marido e da mulher confundiram-se, o mundo passou a ser a casa de todos e não apenas a dos homens e as serpentes da discórdia espreitam a cada esquina: é o orçamento apertado, são as rotinas de vidas exaustas, é a volatilidade dos afectos, a competição desenfreada, enfim, a vida moderna parece ter plantado no caminho dos casais todos os escolhos à felicidade estabilizada, sendo difícil hoje afirmar que o casamento é para toda a vida. E se este é o estado da sociedade, pouco adianta querer travar-se a degradação da instituição casamento mantendo-o indissolúvel à força de leis. Todoos sabemos que as leis vigoram enquanto forem eficazes e são eficazes enquanto houver consciência geral da necessidade delas.
Se abstraírmos duma concepção religiosa do casamento, como sacramento, e da doutrina que o enforma, para considerarmos apenas o instituto civil, parece aberrante manter o contrato à força: um contrato exige consenso das partes e, quando este não existe não há contrato, e se, existindo algum tempo, deixar de existir, a solução lógica é o termo do contrato por falta do referido consenso. Compreende-se, evidentemente, dada a natureza das relações pessoais que o contrato envolve, que o legislador preveja períodos de reflexão ou até tentativas de conciliação. Mas impor a continuação dum casamento em que deixou de haver consenso dos cônjuges não faz sentido. Por isso as alterações legais que contribuam para lhe pôr termo da forma menos penosa possível e mais digna para ambos os cônjuges devem ser saudadas.
Há, evidentemente, diversos tipos de interesses tutelados pelo casamento: os filhos, o património, a assistência mútua dos cônjuges, interesses que, obviamente, subsistem para além da ruptura dos afectos e dos desejos que motivaram o casamento e acabaram por naufragar. Esses interesses devem ser tutelados num equilíbrio de direitos e deveres que a lei deve balizar. Mas que não sejam obstáculo à dissolução do casamento. No fim da contas, a luta da Humanidade pela sua libertação passou também pela libertação de relações impostas. Como consideramos obsoletos, em nome da liberdade do casamento, os casamentos de crianças negociados pelas famílias em certas sociedades, devemos ter o mesmo nível de exigência de liberdade para os casamentos que deixaram de ser voluntariamente assumidos por um dos cônjuges. E afastar o labéu da culpa parece um bom caminho, para que esse labéu não venha a pesar como ónus sobre um dos cônjuges para toda a vida.
Questão diferente é a do casamento de pessoas do mesmo sexo. Ouço clamar pelo fim das discriminações, pela igualdade de direitos, pela liberdade de escolha do tipo de família, pela liberdade de adopção de crianças por casais homossexuais. Separemos as águas: Como cidadão, não tolero as discriminações, sejam de que natureza forem. Mas entendamo-nos: discriminar é tratar de forma diferente o que é igual ou tratar de forma igual o que é diferente. Procure-se então saber, sem demagogia nem berrarias de parada, em que domínios são discriminados, no plano das leis, os homossexuais; examinem-se sem tabús mas sem cedência a modas as leis consideradas discriminatórias e conclua-se, em debate aberto e sem manipulações nem oportunismos, se eventuais diferenças de tratamento se justificam por razões objectivas de direito natural, de organização social ou outras relevantes. Decida-se então o que deve mudar na lei. Se necessário, crie-se um instituto novo que estabilize e dê dignidade a uniões entre pessoas do mesmo sexo. Mas porquê insistir em que tal instituto tem de ser necessariamente o casamento? Não haverá diferenças suficientes ao nível das motivações, das expectativas, dos interesse tutelados, da vocação social, para estabelecer regulações diferentes das uniões homossexuais e das heterossexuais?
O que me perturba no meio desta controvérsia é que o slogan fácil substitua a reflexão séria e que se erija em regra o que pode constituir excepção, respeitável certamente, mas sem virtualidades para fazer progredir a sociedade como um todo. Respeito a diferença, respeito os problemas da discrepância entre a identidade anatómica e a identidade psíquica, respeito as fragilidades de quem sofre num corpo que não aceita, respeito até o direito à inclinação homossexual como escolha voluntariamente assumida. Mas, pergunto, o que tem isso a ver com o casamento?
No meio do barulho da rua, seria conveniente auscultarmos o interior de cada um de nós. Para sermos tolerantes, certamente, mas também para não embarcarmos na primeira carruagem dos alegres cortejos que querem transformar as sociedades em desfiles de moda de gosto duvidoso, só para podermos dizer: que modernos que somos!