“...
Roubam-me a Pátria
e a humanidade
outros ma roubam
Quem cantarei?
Roubam-me a voz
quando me calo
ou o silêncio
mesmo se falo
Aqui d\'El Rei.”
(Jorge de Sena)
Somos decisivamente um povo de emigrantes. Dir-se-ia que a mais sintomática manifestação de vontade dos portugueses é o exílio voluntário, quando a terra é madrasta, as relações sociais desequilibradas e injustas ou o aparelho de poder asfixia as liberdades. Mais do que maiorias ocasionais nas urnas a períodos regulares, mais do que a adesão a ideários de partidos ou a organizações cívicas, mais do que manifestarem-se ruidosamente aos milhares nas ruas das nossas cidades ou permanecerem num silêncio soturno engolindo a raiva para dentro, largas franjas da nossa população emigram, numa atitude de desespero ou de inconformismo, raramente com planos bem urdidos para fundar uma nova vida, mas as mais das vezes emigram simplesmente ao deus-dará, confiantes em que uma réstea de sorte ou um esforço de abnegação lhes trará alguma perspectiva de vida, quando a terra já não tem nada para lhes oferecer.
Os fenómenos da emigração repetiram-se ciclicamente ao longo da nossa história. Há pouco mais de um século, as correntes migratórias para o Brasil provocaram a desertificação do nosso interior. Ao longo do século XX, outra parte importante da população emigrou para as colónias. A partir dos anos sessenta, foi a Europa saída da destruição da Segunda Guerra Mundial e empenhada na reconstrução que atraiu a grande maioria da nossa mão-de-obra, mesmo não qualificada.
Dir-se-ia que o instinto da emigração faz parte do nosso código genético, e muito boa gente, por boas e más razões, bem gostaria que o fenómeno fosse visto desta forma, como se um traço essencial do nosso carácter nos impelisse para a aventura, para o desconhecido, desejo inato de conhecer mundo e abanar imaginárias árvores de patacas. Infelizmente a realidade subjacente é bem menos romântica e bastante mais dura e sinistra. Na grande maioria dos casos emigra-se contra nós próprios, e os que fizeram a sua vida na emigração conhecem bem o sentimento de abandono, de solidão, de desprezos vários, e, mesmo quando emigraram voluntariamente, sintetizam na saudade um autêntico roubo da pátria, porque de roubo se trata quando quem governa o solo pátrio não tem a capacidade ou a vontade política pra os projectos mobilizadores, não é capaz de indicar o caminho com clareza de modo a fomentar a esperança ou, pior ainda, trai no poder as promessas enganadoras com que se legitimou.
A situação de Portugal como Nação é dramática. O Estado, endividado essencialmente para satisfazer vaidades pessoais ou interesses que se sentam como donos à mesa do orçamento, perdeu o crédito e hipotecou a soberania mendigando uma assistência externa que tem um preço elevado. A austeridade receitada pelos credores arruina o já débil tecido económico nacional e lança no desespero não apenas a juventude, a franja mais dinâmica da população, mas igualmente centenas de milhar de chefes de família, feridos no seu orçamento familiar, na sua dignidade e na imagem que projectam para os filhos e para sociedade.
Numa situação destas, que é excepcional, o país necessitaria de dirigentes excepcionais, abnegados, credíveis, acima das querelas partidárias e da linguagem burilada nos bancos do Parlamento ou do Governo. O sistema partidário, no entanto, não tem tais dirigentes para oferecer ao país, porque, por força das lutas internas e das vaidades dos líderes, não se escolhem necessariamente os melhores, mas os que satizfazem os interesses da vasta clientela que se alimenta do sistema e parasita o aparelho do Estado.
Saidos de uma governação que procurava manter-se através da propaganda, caímos numa governação tecnocrática, onde os principais expoentes não têm uma única ideia para além da cartilha que lhes foi dada de fora e da fé cega, quase fanática, nas receitas do ultra-liberalismo.
É neste contexto que fazem sentido alguns comportamentos e declarações dos nossos políticos, como a miséria cívica e política do discurso do Ministro da Economia, o discurso piedoso e de confessionário do nosso Cónego das Finanças e, acima de tudo, a audácia de algumas declarações do Primeiro Ministro.
A ideia de que as pensões deverão diminuir para metade no horizonte da maioria dos actuais activos não apenas carece de demonstração séria, mas é um factor em si mesmo desmobilizador, derrotista, de alguém que, em vez de arregaçar as mangas, aceita o fatalismo do empobrecimento e da miséria. Mas, pior que isso, a sugestão pública de que os portugueses procurem no exterior os meios da sua realização pessoal, emigrando para imaginários paraísos de desenvolvimento, lusófonos ou outros, não pode deixar de sentir-se como um empurrão para fora do país, como um despejo da sua própria casa.
Não basta o corte nos salários e pensões, a asfixia nos serviços públicos, a extorsão na prestação de serviços essenciais como os transportes e a energia, a injustiça de uma carga fiscal esmagadora e desigual, Passos Coelho vai mais longe do que qualquer outro governante antes dele: nega a pátria aos portugueses. Em vésperas de Natal, não se poderia imaginar maior calamidade política.
Boas Festas.