Os sobressaltos políticos dos últimos meses foram ofuscados em parte pelas terríveis imagens que nos chegavam da Ásia. A percepção da fragilidade da vida dos homens sobre a terra deixou-nos a todos aterrados, provocou uma onda de solidariedade sem precedentes a nível mundial, fez superar preconceitos rácicos e políticos, como se as lutas de poder entre os homens e as nações fossem um pequeno episódio perante a enormidade da catástrofe. E, no entanto, continuaram as mortes diárias no Iraque ou na Palestina e continuaram na sombra as estratégias de domínio a pretexto das duas eleições (uma já realizada, na Palestina, a outra programada, no Iraque), ambas de resultados politicos duvidosos. Não se vê, de facto, uma saída política credível a curto prazo para as situações inaceitáveis que se vivem nesse territórios.
Por cá é tempo de eleições e do afiar de facas. Antes de mais, de vingançazinhas pessoais e ajustes de contas através da comunicação social, nem sempre entre adversários políticos mas, mais frequentemente, entre correligionários de partido. Caiu um governo que ninguém no seu perfeito juízo apoiava, com excepção, naturalmente, dos que viviam à sombra dele. E parece que o primeiro ministro ainda não percebeu que é um peso incómodo mesmo dentro do seu campo; questão de semanas, talvez de meses, milagre seria que resistisse muito mais tempo na crista da onda. O tempo dele parece ter passado, com a prova provada da sua incapacidade para governar alguma coisa que não seja a sua vaidade pessoal.
Doutro lado clama-se por uma maioria absoluta, parante um eleitorado que já caiu no limite mínimo da participação cívica e duvida da eventualidade duma verdadeira alternativa: há muito quem pense que, uma vez mais, só mudam as moscas.
Parece assim bloqueada a saída da crise, podendo estas eleições representar mais um golpe na credibilidade do regime, não faltando quem esteja disposto a passar-lhe a certidão de óbito. As causas desta situação, do estado a que isto chegou, só friamente e muito mais tarde serão estudadas e farão consenso. Sem fazer profecias quanto ao julgamento da História, não estará livre de culpas o sistema partidário que ao longo dos anos foi concentrando toda a iniciativa política. Os partidos da área do poder relegaram a uma menoridade envergonhada as iniciativas cívicas independentes, tornando-se agências de emprego rápido e bem remunerado que atraíram as jotas ávidas de dinheiro e glória, do mesmo passo que compeliam ao abandono, por desilusão, os políticos mais experientes e responsáveis, as consciências mais críticas, as vozes mais sensatas.
Poderá este sistema regenerar-se?
Em teoria, sim. Mas para isso seria necessário que os cidadãos mais capazes acordassem para uma consciencialização nacional capaz de moralizar a vida interna dos partidos, apeando os demagogos e dando prioridade a um consenso alargado sobre os grandes desígnios nacionais.
Não é tolerável manter um sistema escolar como o nosso, em que se esbanjam milhões de euros em escolas que não têm alunos e em professores que não dão aulas. Não é tolerável um sistema judicial que não faz justiça a tempo e horas, permitindo aos mais audazes espezinhar a lei e os contratos na certeza da impunidade e afastando as iniciativas sérias que só medram num verdadeiro estado de direito. Não é tolerável o desperdício a que se vem assistindo de fundos destinados a formação profissional, perdidos no labirinto de cumplicidades entre pretensas empresas de formação e gestores de fundos no mínimo pouco vigilantes, enquanto a nossa força laboral vai cavando o fosso que a separa em termos de competência das suas congéneres europeias. Não é tolerável um sistema fiscal de remendos, em que são sempre os mesmos a suportar o fardo dos impostos, perante a evasão generalizada, organizada ou não pelo próprio Estado através de paraísos fiscais ou outros mecanismos de favor. Não é tolerável a dimensão crescente da pobreza, envergonhada no interior, à vista de todos nas cidades, ligada cada vez mais a uma resignação fatalista, sem esperança, sem voz sequer para reivindicar. Não é tolerável o marasmo generalizado do país, embrutecido e deprimido, contentando-se com o pão do telelixo e com o circo do futebol e dos seus epifenómenos.
Perante este quadro, como podem os cidadãos portugueses, que contam os tostões para chegar ao fim da cada mês, deixar-se enlear em pequenas guerras partidárias em tudo semelhantes à tradicional clubite? O povo gostará das vacas sagradas que vai criando, na comunicação social como no futebol, nas autarquias como nas direcções partidárias, mesmo perante a evidência de que esses ídolos têm pés de barro?
A regeneração é possível quando os cidadãos acordarem e usarem a inteligência em vez das emoções, quando raciocinarem em vez de aplaudirem. Entretanto, a tristeza dos dias cinzentos vai ganhando terreno, a esperança fundada vai dando lugar a sebastianismos e o poder vai ficando à disposição dos abutres.
No dia vinte de Fevereiro, é necessário acordar cedo e provocar a revolução cívica, a que pode resultar duma opção consciente que meta os políticos na ordem!
Janeiro 2005