O recente debate entre Governo e Municípios sobre as competências respectivas, as realizações, a distribuição dos fundos públicos e a autonomia, bastante interessante sobretudo para inventariar queixas mútuas, deixou passar em silêncio um dos problemas sociais actualmente mais graves: o tratamento social daquela franja de população do interior com rendimentos escassos, normalmente isolada dos familiares que trabalham no litoral, mais propensa à doença por força do envelhecimento e cada vez mais afastada dos serviços públicos prestados à Comunidade, em razão da deslocação destes cada vez para mais longe.
Não pretendo aqui discutir a racionalidade ou a boa fundamentação das reestruturações dos serviços de saúde ou de ensino, nem sequer a reorganização de serviços como os correios, os abastecimentos de águas ou electricidade, a cobertura bancária, etc. Numa época em que a rentabilidade passou a ser a razão máxima da governação, como se um país não passasse de uma grande empresa, esta crítica situar-se-ia no plano mais vasto da filosofia do Estado e das funções do Estado. O que pretendo assinalar é o que me parece uma omissão imputável aos poderes públicos, seja qual for a filosofia do Estado e a sua organização, e, por conseguinte, também ao Estado português e às suas instituições aqui e agora.
É fácil reconhecer, mesmo numa breve visita às nossas aldeias, que as populações mais frágeis são maltratadas. E são-no porque não têm capacidade de fazer ouvir a sua voz e representam pouco em termos eleitorais.
Os nossos conterrâneos não vão ao médico quando precisam porque não têm dinheiro, ou, devendo deslocar-se, não têm transporte, ou não têm dinheiro para o transporte; não vão à farmácia porque as pensões não chegam para comprar certos medicamentos; não reclamam quando têm razão de queixa dos serviços públicos ou dos abastecimentos públicos, porque não sabem escrever e já têm vergonha de pedir. E até nem apresentam queixa quando são mal recebidos em repartições ou empresas, ou simplesmente quando abusam deles nas mais variadas situações da vida, porque já aprenderam à sua custa que ninguém os ouve.
Todos sabemos que as pensões de velhice são miseráveis. Pois bem: miseráveis ou não, os bancos que as pagam em nome das Instituições competentes têm o descaramento de cobrar comissões que nalguns casos representam 10% do valor da magra pensão (cerca de 12 euros em pensões mínimas). E outros sugerem aos velhos a abertura de contas, nas quais, a troco do crédito directo das pensões sem comissão, vão cobrar comissões de manutenção de conta ainda superiores. Isto não é perversidade? Isto não é insensibilidade social?
O Estado não poderá impor aos bancos a isenção de comissões sobre as pensões modestas? E os nossos autarcas não terão peso suficiente para negociar com os bancos instalados nas suas terras essa isenção? E não poderão facilitar-se às pessoas idosas os calvários para provar que são pobres, sempre que pedem alguma coisa à segurança social, ou à Telecom, ou a outras entidades? É que mesmo alguns benefícios previstos para os idosos saem-lhes caros em termos de burocracia.
A política dos grandes voos, dos projectos faraónicos, das auto-estradas, dos avanços tecnológicos considera restos de saldo as pessoas humildes. E não devia ser assim!
Nos últimos trinta anos, é visível que os nossos concelhos se desenvolveram, mesmo no interior do país. Para quem conhece um pouco outros países com fama de ricos, a comparação dos equipamentos dos nossos concelhos fica surpreendentemente a ganhar em relação a alguns deles. Actualmente dispomos de piscinas de Verão e de Inverno, de estradas bastante aceitáveis para o volume de tráfego, de pavilhões polivalentes, de salas de teatro e de cinema, de bibliotecas e arquivos, até mesmo de acessos facilitados à Internet e a novas tecnologias. Há programas de ocupação de tempos livres, subsídios para concertos de rock ou exposições de arte, viagens de estudo e de formação, subsídios para produção artística, ajudas para instalação de jovens empresários…e, no entanto, os velhos continuam a ser marginalizados, como se não fizessem parte desta sociedade.
Talvez o Estado esteja muito longe. Talvez o governo não ouça os humildes, perturbado diariamente com o ruído dos meios de comunicação, com as críticas da oposição, com as estatísticas da economia, com a diplomacia dos grandes negócios, com as grandes manobras da guerra e da paz. Mas que dizer dos municípios? Os nossos autarcas sabem e tentam colmatar as falhas do Estado. Eu sei que organizam tempos livres para velhos, e festas de vez em quando, e até lhes levam uns ramos de flores ou umas prendas pelo Natal. Mas que diabo: uma pessoa vive todos os dias e todos os dias se confronta com o desprezo, com o abandono, com a incerteza, com a angústia.
Sou dos que entendem que muito do progresso se deve aos municípios. Mas vá lá: mais um esforço de imaginação. Esqueçam por um momento os projectos que se arrastam ou que viriam mesmo a calhar para as próximas eleições. Peçam um pouco de paciência às clientelas do poder autárquico, tornem-se um pouco os anjos da guarda dos nossos idosos. Há que criar gabinetes de apoio abertos, aproveitar solidariedades e organizá-las, ajudar os velhos a resolver os seus problemas do dia a dia. Fazer sentir aos vampiros da sociedade que alguém vela por eles e que está disposto a lutar por eles. E que melhor recompensa para um autarca sério do que um sorriso agradecido dum velho e o respeito generalizado dos idosos?