Celebrou-se no passado dia 9 de Maio o 59.º aniversário do lançamento das comunidades europeias. A efeméride toma como referência a data da declaração de Robert Schuman, então ministro dos Negócios Estrangeiros francês, proferida numa conferência de imprensa no Quai d\'Orsais, em Paris, que passaria a ser considerada uma das ideias fundadoras da Comunidade que nascia.
“A Europa não se fará de uma só vez, far-se-á por meio de realizações concretas. É necessário antes de mais criar solidariedades de facto”.
A celebração coincide este ano com o período pré-eleitoral das eleições para o Parlamento Europeu. Valerá a pena, por isso, reflectir sobre o significado destas eleições, num momento de profunda crise internacional e de enormes angústias quanto ao futuro. Valerá sobretudo a pena verificar se a qualidade dos discursos dos candidatos é capaz de trazer alguma transparência ao debate, sempre inquinado por razões de política interna, ou se, pelo contrário, a discussão se limitará a glosar as velhas frases feitas da defesa do interesse nacional contra a alegada tecnocracia de Bruxelas.
Sabemos que as eleições para o Parlamento Europeu têm sido marcadas por elevadas percentagens de abstenção e nada indica que essa tendência se inverta. No entanto, neste momento de crise, é aos cidadãos que compete dizer o que querem da Europa.
Compreendemos as razões do alheamento dos cidadãos. Na realidade, ao contrário do que propugnavam os fundadores da Comunidade na frase acima transcrita, a União Europeia vem resvalando para uma organização incapaz de assumir as suas responsabilidades históricas, dilacerada entre visões nacionais egoístas e solidariedades internacionais diferenciadas. Ao aprofundamento da integração desejado nos anos oitenta, seguiu-se uma inversão de rumo consubstanciada num alargamento feito a rebate, sem a necessária preparação institucional, o que tem como resultado a impossibilidade prática de gerar os consensos necessários para decisões estratégicas. Por outro lado, o processo de tomada de decisões é opaco para os cidadãos. As políticas que irão afectar a vida dos cidadãos são negociadas no segredo dos gabinetes ou nas conversas de bastidores, nas maratonas nocturnas de Bruxelas em que o ganhar ou perder mais umas migalhas do bolo mais se assemelha a negociações de merceeiro, em que se ganha ou se perde muitas vezes não por ter razão mas por ter ou não ter sono. É esta a situação actual da União: uma organização onde o poder é exercido essencialmente pelos governos nacionais, que projectam nas suas decisões uma visão estreita, limitada a interesses nacionais e confrontada com opiniões públicas nacionais.
Por outro lado, os cidadãos não se revêem nos discursos dos políticos. E é interessante ouvir hoje falar de regulação internacional aos candidatos de partidos socialistas e sociais-democratas que se deixaram completamente seduzir pelos cantos de sereia do liberalismo mais selvagem e que, mesmo quando se encontravam em esmagadora maioria nos governos do Estados-Membros, não hesitaram em acompanhar a liberalização sem regras, a diminuição drástica do papel dos Estados e a degradação acelerada das prestações sociais. Eles são responsáveis pela crise, e não é com discursos inflamados sobre a necessidade de regulação que se regeneram.
Neste contexto, em que se adivinham os sinais percursores duma mudança de sociedade, seria de esperar a emergência de um novo discurso por parte da esquerda. Ora, o que temos vindo a ouvir é uma estafada frase feita que resume aparentemente todos os programas: defender os interesses nacionais na Europa.
Mas quais são os interesses nacionais que se defendem na Europa, se no contexto interno há interesses que todos os dias se combatem?
Vejamos: numa sociedade globalizada, é compreensível mesmo para leigos que hoje não se defendem os principais interesses dentro do reduzido espaço das fronteiras nacionais. A liberdade de circulação de pessoas e de bens tornou o mundo interdependente, e a soberania nacional é hoje partilhada em muitas matérias com outros países. Os interesses nacionais só se podem defender eficazmente a nível de grandes blocos económicos e os países só têm duas soluções: ou participam nesses blocos ou andam a reboque deles.
Ora, a nossa integração na Europa dá-nos a possibilidade de participar colectivamente na defesa dos interesses da Europa, que são comuns a todos os Estados-Membros, ou seja, na definição das políticas e das estratégias da Europa. Os interesses nacionais são uma mistura demasiado anárquica para um discurso de esquerda. Os banqueiros e industriais que provocaram a crise acomodam-se perfeitamente com a defesa dos interesses nacionais.
O que se impõe hoje a uma Europa ambiciosa e solidária é uma reforma das instituições por forma a dar à União mecanismos de exercício de poder assente na legitimidade democrática. Nem as actuais instituições nem as previstas no Tratado de Lisboa, tão mau como o malogrado Tratado constitucional, respondem a esse objectivo. E só os cidadãos podem forçar os governos a um verdadeiro salto em frente.
Nestas eleições, o ideal seria que os cidadãos fossem chamados a eleger um verdadeiro parlamento europeu em listas europeias, um parlamento com legitimidade acrescida e capaz de gerar um executivo forte e eficaz. E que se abrisse a porta à eleição do Presidente da União pelos cidadãos, de forma directa ou indirecta, por exemplo através dum colégio de eleitores tão vasto e representativo quanto possível. A sua designação pelo Conselho, prevista no Tratado de Lisboa, fará dele um presidente frágil, sempre suspeitado de representar interesses dos grandes países e sem legitimidade política para enfrentar os seus pares de outros blocos económicos
Os partidos de esquerda têm de reflectir e actualizar o seu discurso. Se pretendem defender os interesses dos trabalhadores e das camadas populares do eleitorado, essa defesa faz-se dentro da Europa, criando as solidariedades com os trabalhadores de todos os outros Estados-Membros. Essa é uma tarefa europeia, e não uma tarefa nacional. O verdadeiro combate de esquerda passa por um envolvimento total na construção europeia, para fazer da Europa um espaço de solidariedade social e de valores. .
Os candidatos que, ao apresentarem-se a votos para este Parlamento Europeu, têm uma visão europeia reduzida pela estreita perspectiva dos interesses nacionais (sejam lá o que forem esses interesses), não estão à altura das esperanças e dos anseios dos cidadãos. Já é tempo de mudarem de discurso.