O desenvolvimento do capitalismo permitiu a enorme acumulação de riqueza num número limitado de agentes económicos. A concentração desenfreada de empresas após a liberalização a nível mundial das trocas comerciais e dos movimentos de capitais conduziu a uma situação em que alguns grupos económicos têm um orçamento e poder financeiro muito superiores aos da maioria dos Estados. A sua força negocial perante os poderes públicos é de tal ordem que hoje dificilmente a democracia pode impor-se contra os interesses desses grupos.
Nas sociedades economicamente mais avançadas, o poder político joga claramente no tabuleiro desses interesses multinacionais ou estabelece com eles relações de alguma promiscuidade. Alguns países alegadamente democráticos dividem o poder entre as suas elites financeiras e mais não são do que uma democracia de poderosas corporações. Estas ajudam os políticos da sua cor a chegar ao poder, investindo para isso muitos milhões em campanhas eleitorais e fornecendo-lhes os meios de comunicação que os ajudam a manipular a opinião do eleitorado. Depois cobram-lhes o serviço, exigindo-lhes políticas propícias aos seus interesses ou o fechar dos olhos às suas práticas mais condenáveis, frequentemente ilegais ou até criminosas.
Durante muito tempo, os empresários tiveram uma certa ética no exercício da sua profissão. As situações de falência eram consideradas desonrosas e as relações com o seu pessoal, muito embora difíceis nos primeiros tempos do liberalismo, evoluíram ao longo do tempo para criar laços de certo paternalismo, garantindo aos assalariados uma certa base económica de segurança que tinha como contrapartida a paz social na empresa.
A mundialização da economia rompeu todas estas relações, precarizou o trabalho e acabou com escrúpulos das empresas. Estas têm hoje como lema produzir onde é mais barato e vender onde há maior poder de compra. As unidades de produção são coisas que se podem abrir ou fechar ao sabor da conjuntura. Entretanto, a gestão profissionalizou-se e os antigos empresários-gestores foram substituídos por gestores de carreira que tomam decisões autónomas à revelia dos detentores do capital. Nas sociedades cotadas em bolsa, onde o capital está muito disseminado, são eles que, manobrando perfeitamente os diferentes grupos no seio das Assembleias-gerais, consolidam a posição da gestão face ao accionariado disperso, tornando-se donos e senhores do destino das empresas. Mesmo nas empresas públicas, o Estado e os organismos públicos detentores do capital alheiam-se muitas vezes dos destinos das empresas em nome duma propalada independência da gestão, o que leva os gestores a comportarem-se como os verdadeiros donos das empresas e a enriquecerem à custa delas.
Os efeitos perversos desta evolução estão à vista. Em todo o mundo, os gestores passaram a ser principescamente pagos, tendo as suas remunerações médias nalguns países atingido valores escandalosos, independentemente dos resultados obtidos. Em França, por exemplo, divulgou-se recentemente que, nos últimos cinco anos, as remunerações dos gestores das grandes empresas aumentaram oitenta por cento, em contraste com a evolução dos salários dos trabalhadores dessas empresas, que praticamente estagnaram. Em Portugal, como foi recentemente afirmado, sem contestação, num debate televisivo, os gestores das grandes empresas pagam aos trabalhadores os piores salários da Europa, mas pagam-se a eles próprios salários de gestores ao nível dos melhores da Europa. Questões como os salários de gestores públicos, designadamente do Banco de Portugal, e do Metro do Porto, objecto de reparo do Tribunal de Contas, são apenas exemplos duma situação que se generaliza. E por muito que os gestores postos em causa venham contestar, como fez um dos do Metro do Porto, que é tudo inveja, o cidadão comum não pode deixar de lhe responder que é efectivamente uma pouca- vergonha!
Pior que isso, as decisões menos felizes dos gestores ou os resultados apresentados aos accionistas foram frequentemente manipulados pelos gestores com a cumplicidade criminosa de auditores externos que se deixaram enredar nas teias de interesses. É conhecido o caso duma das grandes sociedades de auditoria americanas que corroborou informações contabilísticas falsas duma das maiores companhias de electricidade. Do mesmo modo se sabe que foi com a cumplicidade dos auditores que a Parmalat italiana chegou a uma situação de falência, arrastando para a miséria milhares de pequenos investidores. Entre nós, as manipulações contabilístico-fiscais dos bancos e a impunidade com que arredondavam para cima as taxas de juros vêm revelar o estado de irresponsabilidade em que vive a nata da sociedade portuguesa.
Ao Estado, por mínimo que seja, cumpre fazer cumprir as regras. Mas toda a gente vê que elas só são impostas aos mais fracos. Os privilégios que continuam a ter certos senhores à sombra do orçamento e a irresponsabilidade dos gestores são verdadeiramente o calcanhar de Aquiles deste Governo. É que, por muito que se queira compreender as reformas, e nós queremo-lo, fica sempre esta angústia de concluir que o Governo, mais uma vez, manda que a crise seja paga pelos mais fracos. Isto não é nem capacidade de governar nem firmeza de governação: é pactuar com os interesses instalados…os de sempre!