Todos os indicadores o demonstram: os portugueses estão em maré baixa, acabrunhados pelo nível de endividamento, por uma política de rendimentos restritiva, pelo aumento sensível do desemprego sem se verem no horizonte possibilidades de mudança estrutural, por descrença na governação e nos eleitos em geral, pelas dificuldades crescentes na educação dos filhos ou nos cuidados de saúde.
O certo é que este cenário era previsível e poderia ter-se evitado o pior se, em tempo oportuno, se tivesse explicado sem demagogia que o crescimento da década de noventa tinha sido sustentado essencialmente por subsídios, que havia empregos artificiais que não poderiam durar sempre, que os empresários deveriam ter aproveitado as subvenções para modernizarem as suas empresas e lançar novos projectos, que a agricultura não é uma actividade maldita pelos deuses, mas que se devia enquadrar num espaço económico alargado em que apenas vale a pena cultivar os produtos mais adequados e mais competitivos. Tudo isto seria diferente se os subsídios tivessem servido para fazer formação séria e não para sustentar a fraude organizada ao Fundo Social Europeu; se o FEOGA (orientação) tivesse levado a uma restruturação fundiária assente no consenso dos proprietários da terra e de agricultores informados e formados.
Seremos um povo sem emenda, como afirmava um colega desta coluna de opinião, fazendo referência a uma fama que virá já do tempo do império romano?
A resposta só pode ser dada pela História. É verdade que, quando lemos as crónicas de há cem anos, encontramos o mesmo tipo de crítica no Eça de Queiroz; e se recuarmos duzentos e tal anos, encontramos as mesmas censuras no discurso e na acção iluminada (ou iluminista, se preferirem), do Marquês de Pombal. E duzentos anos antes dele, já o nosso épico maior, Luis de Camões, manifestava a mesma descrença, ao denunciar a /"gente surda e endurecida"/ e uma pátria mergulhada /"no gosto pela cobiça e na rudeza duma austera, apagada e vil tristeza/. Bem recentemente, um político centenário afirmava em entrevista que somos um povo de heroísmo e desânimo. Passamos, de facto, da euforia duns fogachos de prosperidade, como se fôssemos todos milionários, para o desânimo duma procissão de condenados, como se fôssemos todos miseráveis. Não conhecemos o meio termo, o trabalho como processo de melhoria individual e social, o progresso lento, mas seguro, uma carreira progressiva assente em bases sólidas; não temos o grande objectivo colectivo doutros povos, uma estrela que nos aponte um destino, um projecto de quem quer ser alguém num mundo em desagregação e recomposição acelerada. E, no entanto, bastaria querer.
Sim, querer! Mas querer é um acto íntimo individual, uma predisposição para agir, para mudar, para subir, pelo que temos de compreender que o nosso querer se deve dirigir a um objectivo que não é só nosso, mas deve ser partilhado com os diversos colectivos a que pertencemos. O nosso querer só produzirá progresso colectivo se representar o desempenho cabal da nossa responsabilidade cívica, se arrastar as famílias, as empresas, os municípios, o todo nacional. Sem essa aspiração cívica o nosso querer encerra-se num círculo de interesses mais ou menos egoístas. O segredo está em organizar as vontades, dar-lhes um sentido, apontar-lhes um objectivo ou, pelo menos, uma direcção segura e contínua. Enquanto não assumirmos a sociedade em que queremos viver, só nos resta lutar desesperadamente por um lugar individual, por salvar a pele e esperar que as crises passem.
Desenhar o ideal colectivo é a função da política, mas os nossos políticos só muito raramente a têm empreendido. Atolados em pequenos e grandes escândalos, em corrupções de malandros de vão de escada ou em negociatas de alta finança, em cunhas e compadrios ou em estilos de vida de regabofe, em demagogias de feira ou caciquismos primários, incapazes de reconhecerem o mérito aos que pensam doutro modo ou de reconhecerem a fraqueza das soluções que propuseram e falharam, incapazes dum acto de contrição sincero e redentor donde tirassem lições para o consenso e para o futuro, os nossos políticos não têm sido a elite capaz de liderar um projecto ou de empolgar um povo. E, no entanto...
É necessário que este tipo de reflexão não nos destrua, mas nos incentive a fazer melhor: a ter mais exigência nas propostas que votamos, nas escolhas que fazemos, nos homens e mulheres que elegemos, nos pedidos que fazemos, na forma como nos posicionamos em relação ao interesse público. É necessário que a nossa apregoada solidariedade não seja o pretexto para demonstrar a nossa arrogância, que os nossas críticas não sejam motivadas pela inveja endógena, que os nossos julgamentos não sejam motivados pelo proveito que deles tiramos, que a culpa dos nossos erros não seja sempre assacada aos outros, que os erros dos outros não sejam erros apenas por serem dos outros.
Temos de reconhecer que neste sentido se tem inscrito o discurso e o exercício do nosso primeiro político, o actual Presidente da República. Ao longo deste mandato, têmo-lo visto onde é necessário que esteja, a levar a mensagem certa, a solidariedade silenciosa e discreta às famílias enlutadas por catástrofes, o incentivo às actividades económicas em risco, o apelo à formação e à qualificação; capaz de deixar a mensagem da exigência a multidões que esperavam quem lhe passasse a demagogia da mão pelo pelo da ignorância; capaz de dizer num congresso de Trás-os Montes que os transmontanos têm de se ajudar a si próprios, ao mesmo tempo que o governo arranjava desculpas atabalhoadas para promessas não cumpridas; capaz de guardar o equilíbrio das instituições em nome do interesse nacional quando a miséria duma política externa servilista nos empurrava para um atoleiro como a agressão ao Iraque; capaz de interpretar os sentimentos colectivos de injustiça sem caír na demagogia dos julgamentos mediáticos; capaz de dizer aos jornalistas que a informação não pode ser a mera agitação pública que se mede em índices de audiência; enfim, capaz de interpretar o momento que passa sem comprometer a visão de futuro e o destino colectivo.
Em tempo de desânimo e de vacas magras, se calhar é pouco. Se calhar não chega a lucidez dum presidente a quem os políticos deste país deixaram um mero papel de magistratura de influência e de arbitragens extremas. Mas que sirva o exemplo para pensarmos que nem tudo está perdido.
Obrigado, Sr. Presidente!