As más notícias passaram a ser o nosso dia a dia. Chefes de Estado e de Governo, Ministros disto e daquilo, peritos de ciências económica e afins, gestores de grandes empresas, enfim, tudo quanto é gente com direito a púlpito no teatro desta sociedade mediatizada já não ousa fazer prognósticos de futuro radioso, de crescimento e de bem estar.
Calaram-se há muito os arautos do liberalismo sem peias, os demolidores do Estado e os seus serventuários que, nas escolhas políticas de quatro em quatro anos, se propõem gerir os Estados em nome dos interesses deles.
Entre nós, a demagogia dum discurso bacoco que afirmava estarmos a resistir melhor à crise, foi sol de pouca dura. Um orçamento rectificativo pouco mais dum mês após a aprovação de outro que se afirmava sólido e realista, alguns indicadores a sublinhar a triste realidade do desemprego e da recessão e a abalar as convicções dum governo arrogante e grotesco, mais uns quantos ajuntamentos de desesperados à porta dos seus postos de trabalho destruídos por uma lógica de produção que deixou de fazer sentido, foram o suficiente para destruir as leves esperanças dos que pensavam que o ciclo das vacas magras estava a chegar ao fim. Infelizmente a crise está aí para durar.
No plano externo não há melhores notícias. A desesperança que vai por esse mundo, sobretudo nos países que lideravam a economia mundial, com milhares de empregados a estenderem a mão aos parcos subsídios do Estado, e os governos preocupados em salvar desesperadamente, como bombeiros da crise, um sistema em que eles próprios já não acreditam, só pode agravar-se dia a dia, com a dúvida instalada de que os governos são construções de palha que não têm qualquer capacidade nem vontade de mudar de sociedade.
De facto, para além da miséria dos mais desfavorecidos, das dívidas incobráveis das familias, do desespero dos que perderam poupanças e pensões e do conformismo de braços caídos dos que tiveram de encerrar os seus negócios, há um vazio que o povo sente, um vazio a que nos conduziram as últimas décadas do capitalismo desenfreado e sem lei: um vazio de liderança, um vazio de autoridade moral, um vazio de valores, que impossibilitam uma análise prospectiva crua da realidade e o reconhecimento, sem preconceitos ideológicos, de que a sociedade capitalista não tem futuro.
Neste vazio, não se vislumbram forças capazes de protagonizar a necessária mudança. Com a conversão generalizada dos partidos de raíz operária à cartilha liberal, com o esmorecimento dos valores sociais e do Estado-providência, com a formação dos grandes blocos centrais de interesses que monopolizam o poder do Estado, com a degradação ética dos partidos, transformados em clubes de amigos e clientelas e em escolas de promoção do oportunismo e da incompetência, as escassas minorias de cidadãos activos não têm expressão que lhes dê voz nem instrumentos de divulgação de alternativas – se é que eles próprios têm a dose suficiente de flexibilidade para transformar as suas propostas em plataformas de acção aceitável por amplas camadas da população, o que é outra história.
Assim, a crise tem muito que arder, e veremos até onde será necessário chegar para se manifestarem as ideias que proponham uma alternativa credível. A recente eleição do presidente americano Barak Obama, portador dum novo discurso e dum novo relacionamento do seu país com o mundo, é, sem dúvida, uma ponta de esperança. É que a sua eleição não foi a mera eleição dum rival (democrata) dos republicanos conservadores e agressivos. Nunca me impressionaram as eleições dum ou doutro dos partidos do poder na América, faces opostas da mesma moeda, emanações de lobbies eventualmente com interesses divergentes. A eleição de Obama representa uma enorme mudança cultural e política, uma ruptura na tradicional detenção do poder pelos cristãos brancos de origem anglo-saxónica, apenas meio século após a proclamação do sonho do pastor Martin Luther King.
A eleição de Obama é importante não porque tenha em si a capacidade para inverter a crise e repor as relações económicas e o motor do desenvolvimento em marcha. É importante por representar uma radical mudança de cultura política, uma abordagem nova da dignidade do Homem e da igualdade dos povos. E isto pode ser o motor de novas teorias de organização social e de convivência entre os povos.
Para isso, é necessário que as elites intelectuais assumam o seu papel de aclarar o caminho. Parece evidente que a organização económica mundial que acaba de fracassar desastradamente não tem possibilidades de regeneração. Há desequilíbrios demasiado profundos entre a produção de bens e a capacidade de os adquirir, entre a força de trabalho potencial e a força de trabalho necessária à produção de bens, entre a produção de bens de consumo com estrito objectivo comercial e a produção de bens ou serviços necessários à satisfação de necessidades sociais e culturais.
Estes desequilíbrios exigem que se conceba uma sociedade capaz de responder aos novos desafios da humanidade, baseada numa rapartição do rendimento global de forma mais equitativa e mais generalizada, que não pode assentar meramente nas relações de trabalho. O trabalho deve ser dignificado em todas as vertentes e não apenas quando contribui para o crescimento económico. A produção de bens fora do comércio deve ter a mesma dignidade e a mesma valorização que a produção de bens económicos. A valorização de recursos naturais escassos e a protecção do ambiente exigem que os ciclos de vida dos bens deixem de ser tão curtos por razões económicas e se passe a produzir para as necessidades e não para fomentar um consumo eufórico.
Para os cidadãos, a primeira atitude deve ser a de crer na possibilidade de mudança. Porque é possível mudar o mundo. E, quando não formos actores de mudança, tenhamos ao menos a abertura de acreditar na possibilidade de regeneração. Uma outra sociedade é possível.