Manuel Igreja

Manuel Igreja

O país dos oitocentos euros

Na espuma dos dias que correm num verão que não parece ter força para se impor, a discussão corre em torno de uma greve levada a cabo por um punhado de profissionais da roda que pode parar o país, das contas que dizem estar certas e do défice que dizem estar controlado.

A canícula como deve ser ainda não chegou, a área ardida ainda felizmente não causou tragédias de dilacerar os corações e imagine-se, já nem os deleites estivais dos famosos estão a ser alvos de atenção que se note, mesmo que esperneiem para que se apreciem os seus bronzeados e se notem as suas indumentárias de distinto recorte.

A bola começou a rolar pelos relvados avermelhando as emoções, os cãozinhos de estimação passeiam com galanteria os seus donos pelas esquinas das ruas e pelos becos da vida, peneirentos exibindo os tratos finos dados pelos humanos, as criancinhas de um modo geral tomam o mundo como seu, com os paizinhos crescentemente convencidos que o sol se ergue lá em cima exclusivamente para a sua prole.

Cantando e rindo lá vamos indo ao jeito que Deus quer rumo ao que há-de vir neste Portugal arrendado por uns dias aos milhões de turistas que aportam a este pequeno paraíso, recebidos por anfitriões simpáticos com os braços abertos, mas com as pernas a deslocarem os corpos para as arrecadações, porque os cómodos nobres da casa comum se tornaram infrequentáveis para os nativos.

Enquanto isto, o governo para uns governa, para outros desgoverna e para outros nem uma coisa nem outra porque convém mais fingir ora que sim, ora que não. De oras em quando levanta-se uma outra ou outra fervura, porque as notícias referem que se descobrem esquemas escusos e falcatruas de monta, mas desaparecida a água vertida para o bico do fogão, tudo volta ao remanso dos dias.

Nos entretantos, vai-se maniatando o país com cordas entrelaçadas que ainda não sufocam, mas que a médio prazo irão transformar-se em terríveis garrotes. A geração que agora desponta para os comandos da vida deita as gavinhas sem ter onde se agarrar, evita olhar em frente porque o muro está logo ali, vive o agora porque não sabe onde está o depois, e não a ensinaram a valorizar o antes.

O país que nestes dias de agosto pode ficar refém dos camiões, pode não vir a ter onde colocar as mobílias. A maioria dos empregados trabalha para auferir oitocentos euros, a maioria dos patrões esgadanham para lhos pagarem, mas meia dúzia de grandes empresas para gáudio dos respetivos acionistas engrossam os lucros a olhos vistos.

Dominam sem serem dominados nem controlados. Condicionam tudo o resto, sem serem condicionados. Os cidadãos mais velhos injustiçados protestam, mas os mais jovens dão como normal a exiguidade dos salários. Sentem-se até com sorte. Pouco se apoquentam, porque para as comodidades diárias vai dando e quando não dá os pais ou avós complementam.

No país da eterna primavera entreamada com alguns dias de outono, chamado Portugal, de longe visto como um pequeno paraíso na Terra, o futuro pode deixar de ser o que era, porque no presente nos esquecemos de calcetar conveniente os caminhos com os ladrilhos da decência moral e física seguindo o que recomenda a inteligência.

Com oitocentos euros por mês não se consegue.


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