Na caridadesinha que amortecia a ausência de justiça social do regime que se foi com a revolução de Abril, instituiu-se em Portugal uma figura que o povo no seu apelidar chamou de «Pai dos Pobres».
Este, grosso modo, era usualmente alguém de idade já para lá do virar da primeira metade da vida, farto de recursos e de maneiras próprias dos caciques, que por bondade natural, ou por conta de pecados praticados ou a praticar, ajudava os mais necessitados com as sobras que lhe não faziam outro proveito.
Num país com um povo sem escola, e de formação mais que exígua, onde o importante acima de qualquer outra coisa, era a garantia do sustento e da sobrevivência, muito fácil e naturalmente, estas figuras atingiram estatuto de intocáveis, de alguém que bem podia fazer o que lhe desse na real gana, e alguém a ser reverenciado, temido, e hipocritamente invejado.
Pouco interessava a forma como os pecúlios das «almas caridosas» eram adquiridos, nem as acções por elas levadas a cabo, desde que daquilo que lhe não fazia falta, chegassem uns restos com os quais a pequena vida de uns tantos ganhasse um pouco mais de conforto, que não traria muita esperança, mas dava um ténue sinal de mais abastança.
Neste e noutros contextos, se foi moldando ao longo de meio século, a mentalidade de uma nação mantida na morrinha da indiferença, onde civismo, cidadania e cultura não passaram de letra morta, e onde a alienação
medrou que nem erva daninha em terra bem adubada mas não convenientemente tratada.
Com o advento da revolução de Abril, e com a famosa evolução que se lhe seguiu, julgou-se então estarem criadas as condições para de uma vez por todas, não mais fazer sentido qualquer «pai dos pobres», fosse por melhoria das condições económicas de cada um, fosse pelo atingir de patamares de desenvolvimento próprios dos países mais civilizados.
Enganou-se redondamente no entanto quem assim pensou, pois a pesada herança cultural do Estado Novo ainda se não desvaneceu de todo do nosso quotidiano, e marca profundamente a nossa maneira de ser e de estar perante as diversas coisas da vida.
Ainda não conseguimos pôr de lado a reverência oca em face dos que temos como superiores, e perante qualquer burro que use chapéu, verga-se-nos de imediato a espinha. Em relação a qualquer «pai dos pobres» que faça obra mesmo que com o dinheiro de todos, logo lhe prestamos vassalagem, e logo lhe passamos a esponja encima de eventuais atitudes condenáveis em face da lei, como se fosse de somenos importância o que ela regulamenta, e como se a moral das atitudes fosse algo sem a mínima relevância.
Exemplos disto, existem por aí às mãos cheias quase todos os dias, e muito mais agora que finalmente a justiça incomoda muitos que antes se tinham como intocáveis, estatuto que ninguém deve ter mesmo que seja mais inocente que criança de berço. Basta atentarmos nas cenas em frente das instituições da justiça, em que largas dezenas de cidadãos aclamam os
«pais dos pobres», e assobiam quem os incomoda.
Três décadas depois, o fantasma do «homem das botas de Santa Comba» , ainda por aí anda, e após anos de desenvolvimento material, bem pode
dizer-se afinal, que no que respeita ao cívico, ao moral e ao cultural, afinal ainda dependemos profundamente do «pai dos pobres», pois como diziam os antigos, não há ninguém pobre senão de espírito.
O pai dos pobres

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