Manuel Igreja

Manuel Igreja

O medo

O medo nasce connosco. É instintivo. O destino que é a maneira de as coisas serem, diz que começamos a morrer desde o primeiro instante de vida, temos receio, mas cabe-nos sobreviver.

Depois, fazemos por isso e vamos vivendo. Um dia após o outro, uma década depois de outra, até que chega a nossa hora de partir. Sabemos desde logo e sempre que essa coisa de se estar vivo ainda um dia acaba mal apesar de poder ser de múltiplas maneiras.

Por isso o medo colasse-nos na pele, ensombra-nos a alma, inquieta-nos de oras em quando, nem sempre o sentimos, habituamo-nos a ele, mas sem darmos conta impulsiona muitos dos nossos hábitos e das nossas ações, moldando-nos se lhe dermos espaço e oportunidade.

Desde sempre é uma condição humana pegada a cada homem e a mais as suas circunstâncias. Por isso ao longo dos séculos foi utilizado como arma dos mais fortes perante os mais fracos. Com o seu aproveitar e com o seu espalhar, se forjaram formas de domínio, se cimentaram opiniões e religiões, e se implementaram e espalharam civilizações.

Na natureza das coisas, no vencer do medo nasce a coragem que tudo transforma e que faz acontecer. O pintassilgo no ninho tem medo de saltar para o seu primeiro voo, mas salta. A mãe pintassilga sabe disso e força a cria para a grande aventura da vida que começa na borda do refúgio e se estende pelo infinito céu. Os navegadores não sabiam nada do além para lá do aquém, mas avançaram. Venceram o medo e descobriram novos mundos para o mundo.

A coragem não é pois então a ausência do medo, mas antes a capacidade intrínseca e cultivada de se lhe dar luta e o vencer. Não deixando que ele nos ate nem empate, podemos ir sem limite e conquistar nem que seja o impossível porque não sabemos que este existe. Dizem que basta querer e acreditar, pois, quem sabe a hora não espera o acontecer.

Nada disto está nos livros, mas se virmos bem é assim que vem sendo no passado que ainda há pouco era o futuro. Saber disto no presente é fundamental, pois somente assim se garante que o essencial jamais será acessório, e só assim o acessório nunca se assumirá como essencial.
O difícil nisto que parece fácil é a presença efetiva da lucidez que frequentemente vê a sua luz apagada pela ventania surgida do furacão de todos os medos. Cada vez mais existem menos barreiras que impeçam o vendaval que ameaça levar a destruição dos mais nobres valores até quase ao fim.

Por isso os tempos de hoje não vão fáceis. Por isso o horizonte nos surge com a linha desenhada a negro. Mas são ou podem ser os nossos olhos condicionados pelo medo que o espalham enquanto o granjeamos no nosso solo que lhe é fértil.

Mas o medo como quase tudo, na quantidade que baste, também é bom no nosso viver. Se não for por mais nada, é bengala da razão, quando esta corre o risco de ser vencida pelos mandos do coração. Pode evitar erros, pode impedir ações vindas da alienação, pode obstruir amanhã arrependimentos por atitudes de hoje.

Sentir medo é natural e é bom. Eu tenho algum por vezes ao ponto de sentir um frio pela espinha acima. Mas vivo com ele desejando que não seja por ele nem com ele até quando estiver a partir. Espero morrer com ele, pois sei que só assim o meu morrerá comigo.

Hei-de ter pena de morrer. Instintivamente. Mais não seja por medo. Sei lá o que vou encontrar.


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