Num dia ainda recente logo pela manhãzinha, as populações servidas pela centenária e bela linha do Corgo, reduzida pelos erros humanos á distância entre a Régua e Vila Real, acordaram sobressaltadas. Não que se tenha sentido estampido de choque de locomotivas ou sobressaltos terríveis de desastre ferroviário, mas sim porque nesse dia e por mais uns não se sabe quantos, o comboio ia e vai deixar de apitar por entre os montes daqui a pouco pintados pelas cores das parras das videiras.
O rio Corgo vai continuar no seu fado de correr até ao sublime Douro, mas agora sem a companhia dos olhos que são janelas de almas dos passageiros do comboio. A vê-lo da linha, só as danadas cigarras quem nem o calor cala.
Sobressaltaram-se as pessoas, e mostraram-se atentos mas cautelosos os políticos que também o são, entenda-se bem. De quem decide veio a mensagem de que os alarmes são infundados, uma vez que linha vai reabrir-se depois das obras que a tornarão mais segura. Mas não se aquietaram totalmente os espíritos.
Primeiramente ninguém tinha dito cabalmente o que se pretende com a medida que pára as locomotivas, mas depois esclareceram e referiram a falta de segurança evidente que na existência de bom senso, não deixa alternativa para o desligar dos motores numa medida de antes prevenir que remediar.
Sem argumentos ficaram então aqueles que deviam e devem dizer algo. É compreensível e desejável, pois em democracia deve sempre acreditar-se na palavra dada pelos responsáveis, muito mais quando estes são titulares dos mais elevados cargos da Nação. Muito enferma andaria a nossa periclitante democracia se assim não fosse. Exemplos de assim não ser, não faltam, mas enfim, é o mínimo que se pode fazer pelos nossos governantes neste tempo que mais parece sem governo e sem tino por aí mundo afora.
A ser conforme dizem, vai gastar-se na linha do Corgo em obras de requalificação para cima de uma pipa de dinheiro. Para cima de um tonel, pode dizer-se mesmo. Um milhão de euros, nada mais nada menos do que 200 mil contos em dinheiro de antigamente, por quilometro de via nos 26 entre as duas estações ainda em serviço, que de Vila Real para cima ela foi transformada numa coisa qualquer para se andar de bicicleta.
Mesmo assim, torceu-se o nariz. Diz o povo que quando a esmola é grande o santo desconfia, e nada se perde em haver nisto a ausência de acreditar cego. A contribuir para a desconfiança, esteve e está o facto de ainda muito recentemente se terem verificado obras consideráveis na linha no sentido da sua manutenção. Garantem alguns que sabem da coisa, que nunca ela foi tão segura. Mas para mim, quem sabe, sabe, e quem manda pode.
Convém é que haja atenção, muita atenção. Hoje os responsáveis da empresa dos comboios são uns, mas amanhã podem ser outros. Além do mais, agora a responsabilidade política está nuns, neste caso, numa senhora que dizem ser especialista em comboios, mas daqui a uns meses o mais certo é estar nas mãos de outra pessoa deste ou de outro partido do poder.
Cautela e caldos de galinha, impõem-se pois no caso da linha do Corgo que jamais pode ser definitivamente encerrada. Prometem-nos muito, mas nós desconfiamos não nos faltando razões para sermos cépticos. Eu lembro-me do abandono da linha do Douro do Marco de Canavezes para cá, e sinto uma estranha sensação. Podem dizer-me que ela é objecto das atenções devidas, mas não me esqueço que viajo nela nas mesmas carruagens de há 40 anos, num percurso temporal fora de época. No século XXI que é este, para o cem quilómetros entre A Régua e o Porto, o comboio não conseguiu ainda afirmar-se como alternativa ao automóvel, num país que aposta agora na construção de uma linha TGV, com se sabe o último grito em comboios que de tão rápidos serem se calhar nem apitam.
No outro extremo, temos preciosidades como os seus congéneres em nome, primos muito afastados, na linha do Corgo que mesmo sendo ronceiros e circularem a velocidades de dar o sono, são tão ou mais dignos e necessários que qualquer outro, pelo menos para nós que também somos filhos de Deus. Por isso, o comboio na linha do Corgo deve continuar a apitar e nós devemos exigi-lo. Prometem-nos que assim vai ser, e nós acreditámos. Estamos nisto pelo menos para já, sentados na estação da esperança.