Luis Guerra

Luis Guerra

No fio da navalha

No prefácio do excelente livro “As Rotas da Seda”, do historiador britânico Peter Frankopan, pode ler-se em dada altura: “A História mais divulgada e preguiçosa da civilização, escrevia Wolf, diz que «a Grécia Antiga gerou Roma, Roma gerou a Europa cristã, a Europa cristã gerou o Renascimento, o Renascimento gerou o Iluminismo, o Iluminismo gerou a democracia política e a revolução industrial.

O cruzamento da indústria com a democracia, por sua vez, gerou os Estados Unidos, dando corpo aos direitos à vida, à liberdade e à busca da felicidade». Reconheci de imediato que esta era a História que me contavam: o mantra do triunfo político, cultural e moral do Ocidente. Mas este relato tinha falhas; havia modos alternativos de olhar para a História – modos que não passavam por olhar para o passado pela perspetiva dos vencedores da História recente”.

Assim, ao longo de 26 capítulos, este autor passa revista ao processo histórico centrado nessa região do globo que se estende das costas orientais do Mediterrâneo ao Mar Negro e aos Himalaias, esse ponto mediano entre Oriente e Ocidente onde a civilização nasceu e se desenvolveu, onde as grandes religiões mundiais nasceram e se entrecruzaram, onde se formaram e caíram grandes impérios, onde se forjaram as grandes famílias linguísticas do nosso mundo.

Porém, como observa o autor, “o curso do progresso (…) alterou-se no início do período moderno em resultado de duas grandes expedições marítimas levadas a cabo no final do século XV. Em seis anos, na década de 1490, estabeleceram-se os fundamentos de uma vasta disrupção do ritmo de sistemas de trocas havia muito estabelecidos. Primeiro, Cristóvão Colombo atravessou o Atlântico, abrindo caminho a que duas grandes massas continentais até então intocadas se ligassem com a Europa e mais além; depois, escassos anos mais tarde, Vasco da Gama navegou ao longo do cabo mais meridional de África e chegou à Índia, abrindo assim novas rotas marítimas. Estas descobertas mudaram os padrões de interação e de comércio e concretizaram uma notável mudança no centro de gravidade político e económico do mundo. Subitamente, a Europa abandonava a sua posição de região estagnada e tornava-se o fulcro de um sistema amplo de transportes e comércio: de um só golpe, tornou-se o ponto mediano entre Oriente e Ocidente”.

E, prossegue o mesmo autor, “a ascensão da Europa espoletou uma batalha feroz pelo poder – e pelo controlo do passado. À medida que os rivais se confrontavam, a História era reformulada de maneira a sublinhar os eventos, temas e ideias que pudessem ser usados nas lutas ideológicas que grassavam a par das disputas pelos recursos e pelo domínio das rotas marítimas. (…) A História foi deturpada e manipulada para criar uma narrativa insistente, segundo a qual a ascensão do Ocidente era não apenas natural e inevitável, mas uma continuação do que viera antes”. 

Esta lúcida análise, que serve de prólogo a esta crónica, permite olhar e compreender de outra forma para o conflito que se desenha atualmente na fronteira entre a Ucrânia e a Rússia.

De facto, para além da questão ideológica que se brande como argumento, criando uma bipolarização entre democracias liberais e regimes autoritários, está em jogo a expansão ou preservação das áreas de influência das potências mundiais ou regionais, tendo como pano de fundo o controlo dos recursos naturais e dos “mercados”.

Na verdade, na sua citada obra, Frankopan demonstra como, já nos momentos prévios à eclosão da I Guerra Mundial - antes, portanto, do alinhamento bipolar do mundo posterior à II Guerra Mundial -, os impérios russo e britânico disputavam a hegemonia no Médio Oriente, quando o petróleo começava a adquirir uma importância fulcral para o desenvolvimento económico.

Além disso, o historiador britânico explicita como o progresso doméstico das potências ocidentais, nomeadamente no que respeita aos direitos humanos da sua população, graças quer à pressão popular quer à abundância de recursos proporcionada pelos seus impérios, nunca se estendeu aos povos dos países dominados, mas apenas às suas elites dirigentes, desde que as mesmas servissem os propósitos imperiais.

Paralelamente, também se descreve como, ao longo do século XIX, o império russo se foi expandindo para leste e sul, numa ação combinada entre a conquista militar e as alianças políticas, estabelecendo laços de vassalagem entre os líderes regionais e o czar, como já antes, no decurso da idade média, os vikings originários do noroeste russo tinham incorporado os territórios eslavos no seu domínio, fundindo-se com estes e dando corpo à nação russa.

A verdade é que, fruto do seu processo histórico, a Rússia teme e desconfia do Ocidente, tendo, pelo menos, as invasões napoleónicas e a invasão nazi durante a 2ª Guerra Mundial como experiências marcantes do apetite ocidental pelo seu território. Provavelmente por isso, a Rússia não quer a Organização do Tratado Atlântico Norte (NATO, na grafia inglesa) às suas portas. Vendo bem, embora concebida como uma aliança defensiva, trata-se da organização político-militar mais belicosa dos tempos mais recentes, que tem estado envolvida, direta ou indiretamente, em grande parte dos conflitos contemporâneos, como braço armado do projeto de cunho imperial designado por globalização, tal como os acontecimentos demonstram, apesar do cidadão ocidental ter dificuldade de reconhecer essa factualidade, face à narrativa histórica em que foi educado.

É verdade que a Rússia tem o dever de respeitar a soberania e integridade territorial da Ucrânia, como Estado independente, reconhecido internacionalmente, e de se abster de usar meios violentos para condicionar as escolhas do povo ucraniano. E também é certo que a experiência dos países do leste europeu na segunda metade do século XX, tal como a da Ucrânia com a recente secessão da Crimeia e o intento separatista na região de Dombass, não tornam a Rússia um parceiro confiável, pelo menos aos olhos ocidentais. Porém, não será seguramente com a expansão da NATO para o leste europeu, sob o pretexto de defender a soberania e a autodeterminação ucranianas, que se resolverão essas questões territoriais e as tensões que despoletam.

Na verdade, em questões de soberania e autodeterminação não é possível falar em nome dos ucranianos, sem os incluir nas negociações em curso e sem atender à diversidade da sua população, dividida entre a proximidade com os polacos a ocidente e a forte ligação cultural aos russos na parte oriental, tendo nomeadamente em conta a sua inserção secular no território da Federação Russa e, mais recentemente, da URSS.

Por tudo isto, é necessário atender a todos os interesses envolvidos para encontrar uma solução a contento de todas as partes, que permita aos ucranianos decidir o seu futuro político e económico, sem alienar os laços históricos e as relações de boa vizinhança com a Rússia, associando-se ou não à União Europeia, mediante a adoção de um estatuto de neutralidade político-militar e de uma organização federativa capaz de acomodar as diversas sensibilidades regionais no seio do seu território.

De facto, o rufar dos tambores da guerra não auspicia nada de bom para a Europa e para o mundo, porque o seu potencial destrutivo, em vidas humanas e bens materiais, ultrapassa todos os benefícios que as opções disponíveis possam comportar para o povo ucraniano. Assim, oxalá que russos e ucranianos olhem para a sua própria História e se inspirem nas ideias do escritor Lev Tolstoi sobre a não-violência para resolverem os seus diferendos.

O caminho para a Nação Humana Universal não é isento de dificuldades e exige o reconhecimento mútuo dos contributos e das necessidades dos diversos indivíduos, povos e culturas na construção do futuro, de forma a poder-se avançar numa direção convergente a partir da diversidade, mas é o único que garante o progresso real da humanidade.  

Atendendo ao ato eleitoral deste fim de semana, nada mais apropriado do que falar destes temas internacionais que a todos nos involucram, a fim de não violar o dever de reserva que temos de observar em matéria de política nacional.

 

Luís Filipe Guerra, juiz e membro do Centro Mundial de Estudos Humanistas


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