O exercício de escrever, por dever profissional ou pelo simples gosto de dar forma às ideias, leva necessariamente o escriba ao isolamento, durante o qual se encontra frente à sua própria consciência para, segundo o seu padrão de valores, analisar factos, tecer críticas, manifestar opiniões, angústias, desesperos, protestos, mas também afectos, solidariedades, cumplicidades do coração.
Chegado à última crónica do ano, o meu isolamento interior conduz-me, numa viagem pelo tempo, ao tempo e lugar da minha infância. E assim, fisicamente instalado a uns milhares de quilómetros, aqui me encontro espiritualmente, pela magia do isolamento, na aldeia transmontana que me viu nascer e que hoje me sabe bem recordar, já com as geadas a anunciar o Natal e o calendário a deixar caír as últimas notas de tarefas mais ou menos inúteis para abrir, numa imagem sempre antiga e sempre nova, uma página de azevinho com bagas vermelhas, capuzes de Pai Natal gordo e anafado carregado de presentes, renas de nórdicas paisagens em cenários de neve, grutas e meninos, vaquinhas e santos, reis e estrelas. Cá estou, pois, ao canto da lareira, a saborear o tempo. Tempo de amisades velhas e velhos frios, de recordações e saudades dos que partiram, tempo de ansiar por mais justiça e mais vergonha.
O ano foi pródigo em tragédias humanas e ofereceu-nos "ad nauseam" a já habitual tragicomédia política declinada por todas as instituições, partidos e órgãos de comunicação social.
Dos desastres, recordemos a dor das famílias de Castelo de Paiva, dos assassinados do Brasil e de Angola, das vítimas inglórias da estrada e das vítimas das incúrias das obras; para olharmos mais longe, as de Nova Iorque, do Afeganistão e da Palestina; um pouco por todo o lado, as da droga, da Sida, da miséria.
A política nacional ofereceu-nos recentemente uma enorme fífia do Parlamento e dá-nos de presente, na véspera de Natal, uma mudança de moscas onde se vê claramente o balançar dos dez por cento da crista da onda das cidades, que se assustaram com uma reforma que não passou do papel, entre os avanços e recuos dum governo a navegar à vista e a naufragar com uma tempestadesita de autárquicas, e uma oposição marcadamente oportunista e essencialmente incompetente que ainda não sabe de que lado vai agarrar o bolo do poder.
Certo é que a cidadania não está mais assumida do que antes. A política das cumplicidades de gamela e do caciquismo provinciano embrutece as consciências e justifica o vale-tudo.
Olhemos para dentro de nós. Aqui, neste recanto de fragas seculares e milagres de trabalho, onde o Natal ainda cheira a lenha de pinho a arder na lareira e a incenso na missa do galo; aqui, onde todos nos conhecemos e reconhecemos num mesmo destino es quecido da grande política; aqui, onde ainda há o espaço privilegiado do humano e da dignidade silenciosa. Trás-os-Montes faz bem à alma.
BOM NATAL