A crise causada pela subida dos preços do petróleo e as agitações sociais em curso por esta Europa fora vêm pôr em questão o sentido da organização social e económica e exigem uma tomada de consciência dos cidadãos.
Até agora, o capitalismo triunfante vem propagando a ideia de que o melhor regulador das relações económicas é o mercado, a lei da oferta e da procura, acusando-se o Estado organizado de esbanjar recursos, de se burocratizar, de cobrar impostos a mais, de prestar maus serviços. O movimento no sentido claro da redução do papel do Estado agravou-se depois do fim da guerra fria. Com a queda do mundo de Berlim, a unificação da Alemanha, o desastre provocado na Rússia pelo consulado Ieltsine, com a destruição do Estado e a pilhagem das posições económicas do sector público pela elite próxima do poder, o capitalismo viu-se, dum momento para o outro, como o único sistema, ao qual se creditava todo o sucesso, sem haver a imagem especular do confronto com outro tipo de sociedade.
Menos de vinte anos depois, quase todos os Estados da Europa Ocidental já passaram por alternâncias do poder entre uma direita liberal eufórica e uma pseudo-esquerda envergonhada de ser menos liberal e, por isso, colaborante na tarefa de destruição do Estado.
A actual crise é a prova mais clara e mais completa de que a classe política ocidental, depois de ter andado com os grupos económicos ao colo, cedendo-lhes todos os sectores rentáveis da economia, está agora à mercê desses grupos, sem meios para reagir, e com a consciência demasiado pesada para esboçar um sobressalto. Os grupos económicos têm vindo a crescer pelo expediente das fusões e aquisições, tornaram-se verdadeiros impérios condicionadores da acção política, sugaram o Estado até ao tutano, deixando-o anémico, ancorados nas novas tecnologias e afirmando claramente uma doutrina de desobediência às regras que até agora lhes eram impostas. As falências fraudulentas, as operações financeiras viciadas para recolher as poupanças do público, os paraísos fiscais, a descredibilização das grandes auditoras, cúmplices na generalidade das vigarices, o condicionamento dos organismos de controlo, a promiscuidade e colusão entre políticos e empresas, o desrespeito pelas regras da concorrência que se dizia ser a base do sistema da livre emprasa, tudo isto aparece nos dias de hoje com absoluta limpidez.
Face à actual crise, o que fazem os políticos? Dizem-se impotentes, porque, claro está, nem sequer já imaginam intervir para condicionar o mercado. Para eles o mercado é o Deus supremo, sagrado, intocável. Acenam então aos desarmados cidadãos com mezinhas de curandeiro: uns cêntimos de bonificação aqui e ali, uma esmola aos mais marginalizados, umas histórias de embalar aos pescadores, uma eventualidade de mexida nalguns impostos. É isto solução?
Todos sabemos que o mundo se globalizou. Mas os que forjaram esta globalização em nome da eficiência económica não podem vir hoje lavar as mãos como Pilatos perante o descalabro social e a catástrofe humana que assola uma parte do mundo e exclui, mesmo nos países mais prósperos, cada vez mais pessoas duma vida digna e decente. Não: os senhores políticos liberais que nos diziam que o mercado devia funcionar livremente e que o Estado só devia regular, devem hoje REGULAR!
O que lhes falta para isso? Falta-lhes, a meu ver, tudo. Falta-lhes antes de mais a vontade. Vendidos aos interesses privados, sabem que terão sempre um lugar numa administração duma empresa que lhes pagará a traição aos cidadãos com uma posição confortável. Faltam-lhes também os meios, porque voluntariamente transferiram todas as posições que podiam servir uma acção reguladora para as mãos dos grupos económicos. Falta-lhes finalmente a vergonha, porque há muito se contentam com alternâncias de fachada nas danças do poder, com abstenções silenciosas dos cidadãos e com facadas nas costas da democracia, tomando à revelia do povo o que a vontade do povo livremente expressa não lhes consentiria. A este propósito, é miserável o condicionamento mediático que se está a exercer sobre o povo irlandês para inverter a tendência de voto contra o Tratado de Lisboa.
Hoje é o petróleo e de modo mais lato, a energia. Mas não é a energia um sector estratégico? Não deveriam os Estados poder intervir numa situação em que o mercado se embala nos movimentos mais cínicos da especulação desenfreada? Podem as bolsas de mercadorias continuar a ditar a lei à humanidade inteira?
Amanhã podem ser outros bens: O que acontecerá se isto acontecer com a água? Impossível? Nem tanto. Uma boa parte da distribuição de água está hoje nas mãos de especuladores. Bastou que algumas comunas em França ameaçassem rescindir os contratos para as distribuidoras devolverem alguns milhões retirados abusivamente às populaçoes: Mas, e amanhã? Terão os poderes públicos mecanismos para travar a escalada? E então, quem não puder comprar a água, morre à sede?
Isto não é ficção. É um quadro lógico possível da actual organização económica. Os cidadãos precisam de acordar para esta mostruosidade em que o liberalismo colocou as relações económicas, e tem de saber questionar os políticos que contribuíram para este estado do mundo.
Pode ser que o sobressalto dos cidadãos se manifeste por acções pioneiras de alguns sectores: pescadores, profissionais de transportes, desempregados e empregados no limiar da miséria desesperados com o custo de vida. A actual organização do mundo não serve os cidadãos. Ou os cidadãos acordam e impõem profundas mudanças, ou o desespero que leva às grandes manifestações de massas será inevitável. É que a alternativa do sistema capitalista, notem bem, só se encontra no endurecimento das posições do capitalismo, com recurso a segurança e exércitos repressores e a uma tirania globalizada exercida pelos detentores do poder económico. O trilema é este: reforma profunda enquanto é tempo, caos generalizado ou tirania.
É tempo de a Europa dizer o que tem a dizer. Se não for clara, não há tratado que a salve. E se a política não quer salvar-se, então só resta esperar um pouco para a enterrar. Moribunda já ela está.