Recebi do Sr. Dr. Pedro Santana Lopes uma curiosa missiva, incitando-me a votar. Soube então que a mesma foi enviada a cerca de dois milhões dos meus concidadãos, mas, como cidadão cumpridor das minhas obrigações, mesmo das de cortesia, decidi responder. Aqui vai:
Meu caro Santana:
Perdoe-me a familiaridade do tratamento. Sei bem que ainda é o Primeiro-Ministro deste País e que, nessa posição, o tratamento de Excelência seria mais adequado. Mas, atendendo a que se dirigiu a mim como Caro Amigo, tomo a liberdade de pensar que posso tratá-lo de modo mais informal. Respondo, pois, à carta que me enviou e que, cumprindo o seu desejo expresso logo no primeiro parágrafo, li atentamente até ao fim.
Discordo naturalmente das suas afirmações e, consequentemente, não posso concordar com as conclusões que delas tira. Comecemos pelo princípio:
Se eu parasse de ler a sua carta não estaria a fazer nada parecido com o que diz ter feito o Presidente da República. Antes de mais, eu tenho um simples voto e a minha responsabilidade cívica cumpre-se no momento em que exerço o direito de o usar. O Presidente da República representa todos os portugueses, mesmo os que não votaram nele, pelo que a sua responsabilidade é exercer as funções que a Constituição lhe atribuiu e o povo lhe confiou, incluindo a de fiscalizar a actuação do governo. Eu penso que ele o demitiu por pública e manifesta incompetência e, com isso, chamou o povo a votos.
Se eu deixasse de ler a sua carta nada disto aconteceria: não interromperia nenhum processo governativo nem prejudicaria a futura governação do País. Pela simples razão de que, pela mera circunstância de não ler a sua carta, eu não iria influenciar as eleições nem iria alterar o meu sentido de voto, já que, cidadão completo que me prezo de ser, tenho a minha consciência formada e esclarecida e votaria de qualquer modo.
Portugal precisará do meu voto para fazer justiça? Admitamos que sim. Não precisará do meu voto em especial, mas do voto do maior número possível de cidadãos. Quanto a fazer justiça, se as políticas de quem vier a ser eleito corresponderem proporcionalmente às aspirações dos votantes, justiça será feita. Se assim não for, então só poderei pensar que o meu voto, útil embora no plano dos princípios, não teve o efeito que eu desejaria. É o que acontece desde que voto, e já voto há muitos anos.
E por que razão penso que não será feita justiça ou não será feita a Justiça que o meu caro Santana preconiza, a de favorecer os que menos ganham? Ora, está bom de ver: o meu caro nem imagina quanto ganham os que menos ganham, andou sempre muito longe deles (faz-me lembrar um antigo Primeiro-Ministro francês que um dia teve curiosidade de conhecer o povo de perto, meteu-se no Metro e veio comentar para os jornais que lá dentro cheirava muito a suor). O seu mundo é outro, meu caro: você nunca comeu o pão que o diabo amassou e não sabe como vivem pessoas com menos de cento e cinquenta euros por mês. No seu círculo de relações não haverá muita gente de calos nas mãos, com vidas inteiras de trabalho, que nunca tiveram sindicato nem fizeram greve, e que são mal atendidas e enxovalhadas pelos serviços públicos que os políticos deste país dizem querer pôr à disposição delas. Por isso, meu caro, para falar dos que menos ganham, é preciso ter alguma reserva, a reserva da decência. Não cavalgue a miséria com o seu populismo.
Diz-me que não costumo votar. Engana-se! Sou assíduo nas urnas, e não me afasto, apesar de tudo o que alguns políticos têm feito para me convencer de que não vale a pena. É que eu sei que a História não acabou e você também se deve dar conta de que a História não acabou e que a sua provável saída de cena não é o fim da História. A sua saída é inevitável porque, apesar de afirmar que quer demarcar-se da antiga forma de fazer política, não o consegue: você é mesmo o paradigma dessa forma de fazer política, nos jornais, na bola, nas televisões, nos salões, no aparelho do partido, nas distritais onde tem os seus apoios, clones de si mesmo e apoiantes enquanto houver proveito. Você não está fora do sistema: você é o sistema, a demagogia mediática, a dramatização hipócrita. Eu não me dou bem com o sistema, não me revejo nele, mas você, ao dizer que está fora do sistema, é, no mínimo, mal agradecido. O que é que tem feito nestes últimos trinta anos? Não viveu no sistema, com o sistema, para o sistema e do sistema?
Não sei se há políticos mais mal tratados do que diz ser. Eu diria que você é um queixinhas. Reconhece que tem defeitos? Esse é mais um: passa a vida a queixar-se. E não está tão mal quanto isso: veja só os fiéis que tem nas distritais do seu Partido, os colos simpáticos de respeitáveis sectores de mulheres, o entusiasmo dos seus apoiantes da jota, alguns figurões nos jornais…
Eu não me queixo de ser mal tratado. Assumo a responsabilidade que me cabe como cidadão, mas não alinho no seu grupo de autoproclamados mal tratados. Mal tratado tem sido o país. Com o meu voto gostaria de contribuir para que o fosse menos. Mas para isso é necessário que o meu voto exprima a opção que é a minha. A política deve construir-se a partir da diversidade dos votos e das aspirações. Não é o sistema político que deve condicionar o voto em função duma pretensa utilidade ou duma apregoada estabilidade. O voto útil é o que expressa as aspirações genuínas de cada português, e a responsabilidade dos políticos, a sua, é compor a política de acordo com a diversidade desses votos. Só espero que aqueles a quem darei o meu voto saibam interpretá-lo para construir a política.
Pode estar descansado: iria votar mesmo que não mo tivesse pedido. Dizer-lhe como ou em quem já seria abusivo. Mas não dramatize: no fim de contas, você tem garantido, no mínimo, um lugar de deputado na oposição, onde pode prestar um bom serviço ao país se tiver paciência para exercer o mandato até ao fim. E o país não vai morrer por sentir a sua falta no governo.
Com todo o respeito do concidadão,