Acabaram-se as férias, tempo em que procuramos quebrar as rotinas dos dias e semanas sempre iguais e introduzir algum elemento de novidade na monotonia da nossa vida moderna, escravizada pelo relógio. Alguns procuram o privilégio do descanso retemperador nalguma aldeia mais calma das berças ou naquele recanto sossegado duma praia fora de moda. Outros viajam para conhecer novos rumos que, em geral, não escolhem espontaneamente, mas lhes são sugeridos pela publicidade das agências. Para todos se trata, porém, de viver algumas (poucas) semanas de forma diferente.
No início deste Verão, tive a sorte de passar uma semana em Dubrovnik, cidade pela qual nutria algum interesse desde que, há uns três anos, lera o romance histórico de Fernando Campos A Casa do Pó, cuja personagem principal, Frei Pantaleão (de Aveiro? de Coimbra?) por ali passou a caminho da Terra Santa, onde se ia juntar aos irmãos da Ordem de São João de Jerusalém, a Hospitalária. Nesse tempo era Dubrovnik uma Cidade-Estado com larga autonomia, que lhe era consentida pelo império otomano a troco de tributos, e chamava-se no Ocidente a República de Ragusa. A sua história, iniciada muitos séculos antes, muito nos ensina sobre a evolução dos povos e dos Estados e sobre o papel que os cidadãos devem assumir no destino das nações.
Ragusa, cidade situada na Dalmácia do império romano, ter-se-á desenvolvido a partir da antiga Epidauro, por volta do Século VIII e viria a conhecer uma história bem atribulada. No Século XII, após uma miscigenação bem sucedida entre a população de origem romana e aquela que veio com as migrações eslavas do fim do império romano, a cidade dotou-se dum governo próprio.
Submetida durante cerca de cento e cinquenta anos ao poder rival de Veneza, nem por isso diminuiu a sua influência marítima e poder económico, tendo chegado as suas naus a comerciar com a Síria e Norte de África e mantendo consulados em mais de oitenta cidades, entre as quais Lisboa. Foi também durante este período que alargou o seu território pela anexação das ilhas de Lastovo e Mljet, no Adriático. Liberta de Veneza em meados do Século XIV, veio a reconhecer a soberania dos reis croato-húngaros, aos quais pagava tributo, mantendo a sua autonomia. Passando à soberania do império otomano, aí se manteve com o mesmo tipo de autonomia até que, já no início do Século XIX, Napoleão extinguiu a república por decreto. Passando ao império austríaco, havia de vir a integrar, nas contingências das grandes guerras do Século XX, a República Federativa da Jugoslávia, nas condições já bem conhecidas, e a tornar-se parte da República da Croácia após a desintegração da Jugoslávia na década passada.
A velha cidade, património mundial classificado pela Unesco, é uma relíquia solidamente amuralhada num perímetro de dois quilómetros, com acesso por duas portas, uma por terra outra pelo velho porto, entre as quais corre a avenida principal ou Placa, num local que já foi braço de mar. Nas pedras da rua e nos monumentos edificados, que guardam memórias de várias reconstruções, pode avaliar-se a continuidade da vontade de um povo que dirigiu o seu próprio destino contra ventos e marés.
Ao visitar o Palácio dos Reitores, museu simbólico onde se guarda boa parte da memória da cidade, o que mais me impressionou não foram as guerras, antigas ou recentes, os poderes que lhe deitaram a mão, a actividade comercial marítima que manteve ao longo de todo um milénio, chegando a comparar-se a Veneza ou Pisa, ou o terramoto que a destruiu em 1667, mas sim as razões que explicam o destino singular da cidade.
Ao dotar-se de governo próprio, não constituiu nessa época uma democracia como as que conhecemos hoje, já que a população eslava tinha assumido a posição preponderande na colectividade e exercia o poder através das mais de mil famílias de patrícios. Estes elegiam o Senado, que, por sua vez, designava o governo, ou conselho menor, dirigido rotativamente por um Reitor, com o mandato de um mês. Era, pois, uma democracia dos poderosos, uma talassocracia cujo poder económico assentava no comércio marítimo. Simples e eficaz. Uma sociedade de navegadores, comerciantes, artesãos e agricultores, empreendedora e produtiva.
Na entrada da antiga sala do Conselho está uma inscrição que diz Obliti privatorum publica curate, ou seja, deixem os negócios privados à porta e tratem cá dentro apenas do interesse público. No átrio interior apenas um busto, o único monumento da cidade dedicado a alguém: ao navegador Miho Pracat, que não era patrício, que não fez parte do governo, mas que, ao morrer, deixou todos os seus bens à cidade. Se outra explicação não houvesse para o sucesso deste povo, esta chegaria: a clara separação do bem público e dos interesses privados, em que o público e o privado não comem à mesma mesa, a dedicação à causa pública, uma administração sã e transparente, permitiram, num escasso território de pouco mais de mil quilómetros quadrados, fazer crescer uma nação milenar, irradiando cultura, ciência, progresso, dinamismo.
Como seria instrutiva para os que hoje nos governam a lição do Palácio dos Reitores de Dubrovnik!