Henrique Ferreira

Henrique Ferreira

La piccola famiglia lusitana

O caso «Familygate», relativo ao clã da terceira edição do  XXI Governo Constitucional, com familiares de ministros, secretários de estado e membros de gabinetes de assessoria e apoio pode ser analisado sob várias perspectivas. Aqui elenco algumas: ética, legal, eleitoralista, da sociologia política, da cidadania.

Na perspectiva ética, o problema não tem solução porque não há ética sem moral e esta foi excluída da vida pública com os alvores da modernidade política, exclusão consumada na contemporaneidade política. Não havendo consenso sobre que moral seguir, qualquer ética fundamentada numa moral carece de intersubjectividade, isto é, de acordo entre os cidadãos. E os políticos vão dizendo «cada um tem a sua ética e a sua moral» ou seja, que não têm nenhuma delas.

Excluída a religião como norma de vida e a moral dela derivada, resta aos homens estabelecer uma ética através da Lei. Aqui, sim, com um poder democraticamente eleito, será possível estabelecer regras a seguir, legítimas do ponto de vista do emissor porque democraticamente instituído em tal poder. A este conjunto de normas tem-se chamado ética republicana. São normas a-religiosas e a-morais que expressam muito mais o pensamento e os interesses dos seus emissores do que o conjunto do sentir das pessoas da sociedade que elas vão regular («vão as leis para onde querem os "reis"»). Só que, relativamente à questão, não há lei.

A perspectiva eleitoralista analisa o problema do ponto de vista da utilidade eleitoral. É por isso uma perspectiva utilitarista no sentido de captar votos. Paulo Rangel levantou o problema porque viu uma fragilidade  no Governo actual, à luz da moral tradicional, que ele julga presidir ao pensamento comum dos portugueses sobre a matéria. Porém, à medida que o assunto foi sendo debatido, constatou-se que todos os governos foram, até hoje, clãs familiares mais ou menos grandes, embora com grandeza aparentemente exagerada no actual Governo. Do ponto de visa eleitoral, o PSD parece ter dado um tiro no próprio pé já que permitiu ao Primeiro-Ministro o brilharete de pedir a regulamentação da matéria e ao Presidente da República a sentença de que ou legislam ou, então, calem-se. E, como não querem legislar, o problema eleitoral vai «morrer» aqui evidenciando a hipocrisia entre a procura de legitimação dos actos políticos e a prática real dos políticos.

A perspectiva da sociologia política limita-se a descrever as acções políticas e a interpretá-las à luz da ciência política. Deste ponto de vista, constata-se que as acções políticas já não são orientadas nem por qualquer moral nem por qualquer ética dela derivada mas pelos fins da política democrática, isto é, a defesa dos interesses pessoais, de grupo e de partido político, sem quaisquer escrúpulos. As acções, por mais vis que sejam, são justificadas com fins nobres e interesses nacionais mas elas destinam-se apenas a responder aos intereses ou de alguém ou de alguns ou de muitos, de preferência contornando todas as regras e todos os princípios. O principal elemento de garantia da prossecução destes interesses é a confiança política e quanto mais restrito for o grupo de pessoas que conhece «os segredos», melhor. Aqui chegados, percebe-se que a melhor forma de pôr em prática estes intersses é tornar os governos numa família. As pessoas já não querem saber  nem se a mulher de César é honesta nem se o parece, querem é atingir os seus objectivos.

Do ponto de vista da cidadania, é óbvio que, se um Governo perdeu a confiança nos  cidadãos, fechando-se em si mesmo, está a fechar a democracia e está a dizer implicitamente que os outros não são competentes para governar. Limita a percepção sobre o número de pessoas a quem serve e empobrece a democracia pela ausência de participação das pessoas da sociedade nos assuntos públicos. Nada que preocupe quem tem uma visão pirata da governação para tirar dela o maior proveito pessoal, de grupo e de partido. 

Mas, cada vez mais, em Portugal, é esta visão pirata que prevalece e, pelos vistos, os deputados nacionais não estão interessados em limitar as arbitrariedades que podem praticar. De resto, na nossa democracia, são eles próprios quem legisla sobre os seus direitos, privilégios e interesses, o que se revelou num dos maiores «pecados» dela. Mas o caminho faz-se caminhando e alguém, um dia destes, encarregar-se-á de colocar alguma ordem na «barraca».


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