Até agora tinha-se tornado legendária a justiça de Fafe, nascida duma lenda que, aliás, só honra a gente daquele concelho, já que terá nascido do louvável lavar duma afronta a que um deputado local às Cortes se viu obrigado por ter sido injustamente ofendido. E, em vez de escolher como armas para defrontar um nobilíssimo Marquês as que à posição social do seu adversário mais conviriam, contentou-se, fazendo jus à sua terra, em lhe administrar o correctivo com o tradicional varapau. Viva, pois, a justiça de Fafe e aqueles que prezam a honra e o bom nome.
Diferente valoração moral me parece dever fazer-se nos dias que correm à justiça de Felgueiras. Já há uns meses, numa crónica intitulada Justiça Popular, verberámos as tentativas populistas de se fazerem julgamentos populares que conduziriam à absolvição ou à condenação públicas de figuras mediáticas. Já então apontávamos o caso de Felgueiras como a tentativa de aproveitamento da legitimidade eleitoral para fugir a responsabilidades que não cabem no mandato eleitoral nem estão a coberto de qualquer imunidade legal.
O povo é, naturalmente, quem mais ordena, na escolha dos que hão-de fazer as leis, governar e administrar. Mas o povo não é quem mais ordena para dizer quem é culpado e quem é inocente, para dizer quem deve ser julgado e quem não deve ser julgado, para decidir quem deve ser privado da liberdade ou ser deixado em liberdade. E isto tem, pura e simplesmente, uma razão lógica: o povo não está em condições técnicas de exercer directamente os poderes que delega nos seus representantes, especialmente quando se trata de actos concretos como investigar a verdade, nem em condições de imparcialidade e independência para julgar comportamentos.
Quando o povo vota, não lhe é exigido que o faça com imparcialidade, antes tem o direito de o fazer de acordo com o que julga serem os seus interesses. Ora, os interesses são, por natureza, subjectivos e diversos. Mas a lei (designadamente a lei penal) é igual para todos e deve aplicar-se a todos de forma imparcial. Não basta que alguém tenha sido eleito para dirigir uma câmara para que fique acima da lei ou da perseguição penal por actos ilícitos. Não basta a alguém dizer que tem o apoio do povo para ter direito a uma imunidade que o povo não pode dar-lhe.
Não quero, por razões óbvias, fazer qualquer juizo sobre a culpabilidade ou inocência da presidente da Câmara de Felgueiras. Tal juizo compete única e exclusivamente aos juízes, tal como só a eles compete decidir da prisão preventiva ou doutras medidas. O que, como cidadão, me é permitido fazer é um juízo político. Nesta matéria, entendo que um político deve ter paredes de vidro, de forma a que a sua vida seja transparente, pois só assim se defendem as instituições, a dignidade da função, a autoridade do Estado. Ao recusar a autoridade dos juízes, fugindo, a Presidente da Câmara pos em causa todos esses valores, rejeitando o tradicional princípio de que quem não deve não teme!
As gesticulações feitas pelo seu mediático advogado brasileiro e a comunicação que, na fuga, dirigiu ao povo de Felgueiras só vêm agravar a censura política que a sua conduta merecia. A República não se compadrece com a anarquia ou com a confusão de poderes. Há uma ordem instituída que deve ser respeitada.
A parte do povo de Felgueiras que veio para a rua em vigília e que acabaria por molestar o deputado Francisco de Assis não será numerosa; não será sequer representativa do sentimento geral do concelho. Mas cada um dos vociferantes heróis que defendiam a honra pretensamente ofendida da sua dama devem agora interrogar-se das razões que os guiaram: muito provavelmente, na base dessas atitudes estarão motivações bem menos cavalheirescas e bastante mais egoístas. Os populismos constroem-se principalmente com base em interesses difusos por vezes não confessáveis.
Quanto aos que se estribam agora numa legitimidade eleitoral que este processo já varreu, uma vez que a bandeira que os cobria nas eleições deixou de os cobrir, e se agarram aos lugares da vereação, bom será que os partidos estejam atentos: o exemplo de Francisco de Assis ao fazer o que se impunha para salvar o seu partido do lodaçal de Felgueiras deve fazer pensar que há independentes que, pela sua estatura cívica, honram qualquer lista de que façam parte; mas outros há que, de facto, só atendem aos seus próprios interesses e são capazes de todas as alianças quando lhes cheira a gamela.
Fernando Gouveia