A peça em vários actos representada em cenas várias ao longo do mês a propósito da aprovação da lei de programação militar devia interpelar os cidadãos quanto ao estado das Instituições e ao comportamento dos eleitos, que têm como missão defendê-las e fazê-las evoluir de acordo com as mudanças do tempo.
A análise jurídica dos factos não pode fazer-se objectiva e exaustivamente na comunicação social, e não é pelo facto de eminentes juristas terem tomado posição pública que uma ou outra posição política é mais credível. Mas também não é uma análise jurídica que os cidadãos esperam, já que, se a questão se limitasse a uma controvérsia jurídica, não faltam no sistema institucional as instâncias para a dirimir. O que nos interessa é, pois, o facto político e o aproveitamento que dele se fez.
Também não está em causa o mérito da lei aprovada no Parlamento, (aliás, com confortável maioria), mas apenas o processo legislativo.
A questão que acaba por se colocar é esta: a vontade da Assembleia da República, principal órgão legislativo da República, foi correctamente escrutinada? A esta questão acabou por se ligar outra: a Assembleia da República é o conjunto dos deputados eleitos pelo povo ou o somatório das vontades dos grupos parlamentares com a dum ou doutro deputado independente?
Face à Constituição, não há dúvida possível: A Assembleia são os deputados, que representam colectivamente a Nação inteira. O voto pertence-lhes, é um poder, mas também um dever, exprimi-lo de acordo com a sua consciência e com a apreciação que façam do bem comum.
Mas também é verdade que os deputados só podem ser eleitos em listas propostas aos cidadãos pelos Partidos, pois estes detêm o monopólio de apresentação de candidaturas. Tem este facto tal força que deva comprometer o sentido do voto livre dum deputado?
Entendemos que não, e não estamos sós. Deputados dos mais brilhantes da nossa recente história parlamentar e pertencentes a bancadas diferentes votaram uma vez ou outra contra as orientações de voto dos seus grupos. Outros houve que, confrontados com a alternativa entre a fidelidade ao grupo e a liberdade inerente ao mandato, preferiram abandonar o grupo e respeitar os imperativos de consciência, perdendo desse modo amisades e arriscando carreiras. Uns e outros cresceram em prestígio e no respeito dos cidadãos.
Parece-nos que estes deputados interpretaram correctamente o mecanismo da democracia, interpretando fielmente e de boa fé o mandato que lhes foi conferido.
Menosprezamos, por acaso, os Partidos? Não, e é conveniente afirmá-lo desde já. Somos do tempo em que era proibida a sua existência e não temos boas recordações dele. Os Partidos são tão necessários à democracia como qualquer outro instrumento de formação de opinião e de organização da acção política. Só eles têm vocação para elaborar com certa permanência as bases ideológicas que conduzem à acção política organizada. Nos eleitorados nacionais e até nos eleitorados locais de certa dimensão, os Partidos são o corpo intermédio que, pela publicidade das suas ideias e pela capacidade de organizar a acção política, assegurará aos eleitores que o seu voto exprimirá a opção por certa orientação política e não por outra.
Mas os Partidos têm os seus limites e, mais que isso, criam os seus vícios. Como potenciais organizadores dos poderes do Estado, tornaram-se no veículo ideal de certos interesses nem sempre legítimos, o comboio apetecido de todos os arrivistas e oportunistas. Além disso, estenderam de tal forma os seus tentáculos de monopólio eleitoral que, até este ano, detinham a tutela de todos os eleitos, desde a Assembleia da República às autarquias locais, incluindo uma grande parte das freguesias - já noutra crónica propugnámos a vantagem de suscitar iniciativas autónomas de cidadãos para as eleições autárquicas, fora do controlo dos Partidos.
A tutela dos eleitos deu aos aparelhos partidários a ideia de que são eles os verdadeiros detentores do poder. O veículo de acção política tornou-se, assim, um usurpador do poder. E foi isto que ficou claro com a polémica aprovação da lei a que nos vimos referindo.
A Assembleia da República, ao aprovar, nas costas do povo, uma prática de voto que colocava nos grupos parlamentares a totalidade dos votos favoráveis dos presentes e o dos ausentes, confiou às respectivas direcções o exercício do voto que só aos deputados pertence. E partiu, para tanto, dum pressuposto duvidoso: o de que quem não está presente para manifestar discordância vota necessariamente com o grupo, ou, dito doutra forma, quem cala consente.
Todos sabemos que não é esse o significado das ausências, ou, pelo menos, de uma parte delas. Uma ausência pode significar para o deputado um difícil equilíbrio entre a sua consciência e a preocupação de evitar dificuldades ao seu grupo político. Há, pois, ausências qua falam alto quanto ao inequívoco significado do silêncio. O acordo a que a Assembleia chegou e pelo qual se regeu ao longo dos anos foi, por isso, um mau serviço prestado à democracia, à transparência e às Instituições.
Que dizer agora dos que, tendo aceitado e participado ao longo dos anos nessa ficção, vieram agora suscitar o problema num momento político concreto, em período pré-eleitoral e na véspera da discussão de novo orçamento?
Apetece dizer que fizeram o mal e a caramunha . Também a eles interessava a fidelidade absoluta dos deputados ou a tutela dos votos. Também eles - principalmente eles - se mandaram como gato a bofe ao deputado Campelo, pelo facto de o seu voto livre - os seus eleitores o julgarão, e aposto que não tem grande coisa a temer - ter permitido a aprovação dum orçamento.
Virem agora denunciar, como virgens ofendidas, a ausência dos deputados, e exigir o voto individual da maioria dos deputados e não apenas a simples maioria dos grupos parlamentares é uma valente cambalhota, é quase um salto mortal. Não os moveu certamente a pureza dos princípios, mas apenas o mais oportunista dos pretextos.
Que uns e outros tirem da farsa algum proveito. Ou então, de guardiões autorizados do templo, passarão a coveiros das Instituições.
Novembro de 2001