Os emolumentos do registo e do notariado
Quando as pessoas no interior do país se queixam do governo, ou melhor, da governação, há quem as olhe de Lisboa com a suprema autoridade de quem sabe tudo e a complacência que normalmente se dispensa aos simples. E, no entanto, bem andariam os atarefados políticos da capital se, de vez em quando, dessem uma espreitadela à imprensa regional, visitassem umas repartições de terceira ordem, fizessem umas visitas de trabalho mais demoradas para encontrarem não apenas os seus representantes locais, normalmente veneradores e obrigados, mas também os que trabalham e lutam pela sobrevivência dessas terras.
Vem isto a propósito duma notícia que acabo de ler neste diário, que me dá conta da contestação dos advogados e solicitadores de Chaves à nova tabela de emolumentos dos registos e do notariado. Dei uma vista de olhos ao diploma que as aprovou e afirmo desde já que o protesto tem o meu apoio. Nestas linhas apontarei as razões, não apenas cívicas, mas também jurídicas, que podem fundamentar o protesto e até justificarão, certamente, algumas acções judiciais contra o Estado.
Há tempos, veio o Ministro da Justiça explicar a razão das novas tabelas. Para quem não sabe, o Governo português viu-se confrontado com alguns acórdãos do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, proferidos na sequência de processos de impugnação judicial de emolumentos notariais e de registo comercial, movidos ao Estado por empresas do Grupo Sonae . Aquele grupo alegava que os emolumentos, cuja importância era tão exorbitante que deixou de corresponder à noção de pagamento de serviços prestados pelos registos e pelo notariado, constituíam um verdadeiro imposto e, assim, sendo, eram contrários a uma directiva comunitária relativa aos impostos que incidem sobre as entradas de capitais nas sociedades.
O Tribunal de Justiça esclareceu a questão, para que os tribunais portugueses decidissem o caso concreto. E o esclarecimento foi, resumidamente, o seguinte: quando um emolumento ultrapassa o que é razoável como contrapartida dum serviço prestado pelo Estado (notariado, registo comercial ou predial, etc.), esse emolumento constitui um imposto. Assim sendo, será um imposto contrário à directiva que se refere à tributação das entradas de capitais nas sociedades.
Estes acórdãos, embora de alcance limitado, uma vez que só se referiam a actos relativos a capitais de sociedades, dava, no entanto, importantes indicações quanto ao que um Estado pode fazer. Em resumo o Tribunal Europeu esclareceu que
a) Os emolumentos cujo montante aumenta directamente e sem limites na proporção do capital social subscrito não têm carácter remuneratório e devem considerar-se uma imposição.
b) Só têm carácter remuneratório as retribuições cujo montante é calculado com base no custo do serviço prestado. Para calcular o montante dos emolumentos com carácter remuneratório, o Estado-Membro tem o direito de tomar em consideração não apenas os custos, materiais e salariais, directamente ligados à execução das operações de registo de que constituem a contrapartida, mas também a fracção das despesas gerais da administração competente que são imputáveis a estas operações.
c) É admissível que um Estado-Membro apenas cobre emolumentos pelas operações de registo mais importantes e que repercuta sobre estes os custos de operações menores efectuadas gratuitamente.
d) Como é difícil determinar o custo de certas operações individuais, pode fazer-se um cálculo forfetário, de modo razoável, tomando em conta, nomeadamente, o número e a qualificação dos agentes, o tempo gasto por estes agentes bem como os diversos custos materiais necessários à realização desta operação. Mas um Estado-Membro tem o direito de fixar antecipadamente, com base nos custos médios de registo previsíveis, emolumentos normalizados para a execução das formalidades de registo das sociedades de capitais. Nada obsta a que os montantes desses emolumentos sejam estabelecidos por tempo indeterminado, desde que o Estado-Membro se certifique a intervalos regulares, por exemplo todos os anos, de que tais direitos continuam a não ultrapassar os seus custos de registo.
Com estes critérios, o governo português podia estabelecer uma tabela de registos que fizesse incidir sobre os actos mais importantes o ónus do custo dos serviços do registo respeitantes a actos da vida corrente do cidadão que ou não têm valor económico ou cujo valor é insignificante. E não o fez.
O que fez, ao publicar o Regulamento Emolumentar dos Registos e do Notariado, foi beneficiar descaradamente os actos respeitantes às sociedades e onerar desmesuradamente, até ao nível do indecoroso, os actos que mais se praticam nos cartórios e registos do interior: os actos que têm por objecto o minifúndio, que é a regra geral numa boa parte do país rural. E isto demonstra um desprezo chocante pela gente do interior e uma cedência canina aos interesses dos poderosos da banca e do betão.
O escândalo da tabela aprovada é tal que inviabiliza todo o comércio jurídico sobre imóveis rústicos de baixo valor. É sabido que uma boa parte dos prédios rústicos não estavam, até há poucos anos, descritos no registo predial; a situação tem vindo a regularizar-se desde que, há cerca duma dúzia de anos, passou a ser legalmente impossível realizar actos notariais sobre prédios não descritos. O expediente habitual dos proprietários, que tinham perdido o vínculo jurídico da propriedade depois de várias sucessões não tituladas, foi recorrerem às escrituras de justificação. Esse esforço de trazer para o comércio jurídico as transacções sobre prédios vinha sendo coroado de êxito. Mas agora, esse movimento torna-se pura e simplesmente inviável pelos custos que implica. Na realidade, se alguém quiser legalizar, por exemplo, vinte courelas (que não é sinal de riqueza, como se sabe no interior do país), gastará para o fazer qualquer coisa como 2220 euros, cerca de 445 contos, em certidões negativas, notário e registo. Se fizer em seguida uma doação a um filho ou uma partilha entre os filhos desembolsará mais cerca de 1500 euros, ou seja, mais 300 contos. Em muitos casos os custos serão superiores ao valor dos actos, o que configura claramente uma situação de confisco.
Os profissionais do direito saberão como contestar esta política, nomeadamente pela via da alegação de inconstitucionalidade material (ofensa do direito de propriedade). Mas importa que as autarquias, os interesses locais e a comunicação social se manifestem; que peçam contas à gestão do Cofre dos Registos e do Notariado e que exijam transparência nos cálculos do custo dos serviços e na sua distribuição. Isto não é governação; é uma trapalhada!
Fernando Gouveia