Vivemos numa democracia que, ao longo dos quase 36 anos de vida e após alguma turbulência inicial, perfeitamente normal nas condições em que surgiu, se foi acomodando aos padrões normais das democracias ocidentais, marcadas pela mediação política dos eleitos, quase exclusivamente por iniciativa e sob tutela de partidos políticos. É a isto que se chama democracia representativa e que os políticos que a fazem dizem com um certo fatalismo, por vezes cínico, que é o pior dos regimes se tirarmos todos os outros.
O problema é que o aforismo serve para encobrir muita perversão e cortar o caminho a projectos de representação política muito mais responsabilizadores. A regra de que os cidadãos vão uma vez às urnas de quatro em quatro anos, ou de cinco em cinco, e depois se remetem ao silêncio, dando carta branca aos seus representantes para, no intervalo, fazerem o que querem ou o que lhes convém, é em si mesma um perversão da democracia, transformando-a num mecanismo meramente formal, manipulável durante os períodos de eleições com enormes meios de propaganda, pressão sobre o eleitorado, manipulação dos factos políticos, formulação de promessas que ninguém tem a intenção de honrar, descarte de qualquer alternativa que não passe pelo sistema de valores dominante.
A ideologia liberal veio agravar este fenómeno, uniformizando os políticos e os partidos num quadro de políticas ditas de centro, que constituem a grelha de governação de qualquer partido que aspire ao poder, diga-se ele de esquerda, do centro ou da direita. Um quadro em que as referências ideológicas se confundem com o liberalismo económico, com o apagamento do Estado, que é acusado de ineficácia, e o desprezo de valores que possam de algum modo pôr em causa o livre comércio, a sociedade de consumo, a supremacia absoluta do dinheiro.
Os cidadãos vão vivendo nas águas mornas dum consumismo imposto a golpes de publicidade e facilidades de crédito, e, quando a crise chega, dão-se conta de que a sua condição de cidadãos se transformou em estatísticas de consumo, presos nas teias dum crédito irresponsável que lhes hipoteca anos de vida, esperanças e expectativas.
É certo que há partidos nas margens deste pensamento único que enforma a chamada real politik. Mas, desprovidos dos meios que os grandes interesses fornecem a quem os apoia, só em épocas de grave crise social ou de tragédia nacional conseguem concitar alguma atenção do eleitorado. Eles não têm empregos para oferecer, nem lugares nas estruturas do Estado, em conselhos de administração de empresas ou nos grandes órgãos de comunicação.
A crise em que vamos caindo todos, mesmo aqueles que a pensavam passageira, vem lançar um alerta sério sobre os sistemas políticos e os partidos que protagonizaram a liberalização do Estado e a entrega do poder efectivo aos agentes económicos. Já hoje, os partidos que dispensavam o Estado e se entregavam ao abraço matreiro do capitalismo desenfreado vêm, com lágrimas de crocodilo, reclamar a regulação dos mercados, depois de terem endividado o Estado a níveis nunca imaginados para salvar o sistema da bancarrota.
E o problema que neste momento mais atormenta os europeus, o desemprego, não pode ter a solução tão simplista que apontam os governos, drogados com uma única palavra: o crescimento. Não é qualquer espécie de crescimento que produz emprego. E os últimos vinte anos aí estão para o provar. Os governos, com uma visão de curto prazo que coincide com o dos mandatos eleitorais, incapazes de se entregarem a uma análise prospectiva séria sobre o futuro e as necessidades de modificação do sistema desde já, vão embalando o eleitorado em esperanças todos os dias desmentidas pela realidade. O desespero das classes populares aumenta e a pressão social pode muito bem explodir na rua.
É o momento de os cidadãos acordarem e assumirem nas mãos o seu destino. É o momento de pedirem contas aos partidos do sistema e dizerem-lhes claramente que querem outro tipo de sociedade.
Foi por isso que vi com uma certa esperança a candidatura dum homem exemplar à Presidência da República. Fernando Nobre não é um produto do serralho da política, mas um homem de terreno, de grandes causas. Tive o privilégio de o conhecer brevemente em África nos anos oitenta, quando conduzia pessoalmente as missões da AMI por vários países do Sahel. Um homem simples, que trocou a honra e o proveito de uma carreira médica ou universitária de prestígio pela assistência aos mais humildes e desgraçados dos humanos em zonas de ferro e fogo, sem compromissos com governos corruptos ou com poderes instalados. E que, quase trinta anos depois do início da sua aventura solidária por esse mundo fora, regressa à sua cidade e vem encontrar os miseráveis da nova ordem económica, os excluídos da sociedade de consumo a viverem na valeta, a comerem as sopas da misericórdia e a esconderem um resto de dignidade num apagamento silencioso.
Estou seguro de que foi o escândalo desta exclusão que ditou a candidatura de Fernando Nobre, porque é necessário que alguém grite a revolta e que leve à arena da política a dignidade humana e a justiça social. E este grito não necessita de se apoiar em partidos que até agora lhe fizeram orelhas moucas. E não precisa da cumplicidade de velhas raposas que gostariam de colher algum proveito pessoal da iniciativa generosa deste cidadão. Este grito necessita antes da lucidez dos cidadãos anónimos, da boa fé dos homens de boa vontade, da adesão dos que querem transformar a sociedade no sentido da justiça e do progresso.
Não sei qual será o acolhimento eleitoral da candidatura de Fernando Nobre. Há muitos interesses envolvidos nas teias dos partidos e nos corredores do Estado que tudo farão para a reduzir a uma iniciativa simpática, idealista, sem consequências práticas. É possível que assim seja e que a generosidade deste cidadão se perca no meio do gigantesco barulho que não deixarão de fazer em devido tempo os que se julgam investidos duma legitimidade assente em galões da política. Seria pena que a maioria pobre do povo português não entendesse uma candidatura que a representa. Já é tempo de esse povo fazer ouvir a sua revolta.
Fernando Nobre ou a candidatura do inconformismo

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