Não é apenas em Portugal que o discurso político se caracteriza por códigos mediáticos construídos pelos verdadeiros detentores do poder para convencer a maioria dos cidadãos de que só há um caminho. Hoje em dia, o liberalismo triunfante, depois de governantes às ordens do poder económico terem abdicado de toda a intervenção nos mecanismos de mercado, fabrica uma cartilha que é uma espécie de vade mecum de qualquer politicozeco de algibeira que pretenda chegar a ministro. A cassete liberal utiliza em profusão a palavra moderno, modernidade e termos associados, remetendo para a berma da política todos os que não lhes seguem a linguagem ou a orientação política.
Em Portugal, o governo actual é um bom exemplo disso: o primeiro-ministro é um magnífico exemplar desse tipo de político de plástico, capa de revista ou sorriso de marketing, que, em vez de responder com factos aos argumentos dos adversários, joga sobre a imagem ou o discurso da modernidade, sem nunca explicar exactamente o que entende por isso.
A alegada reforma no Serviço Nacional de Saúde deixou a descoberto as urgências no interior do País? Não! São as vozes retrógradas que se opõem à modernidade e ao progresso!
Centenas de milhares de trabalhadores fazem greve ou protestam nas ruas pela perda de poder de compra? São manobras duma central sindical que faz o mesmo folclore há trinta anos!
Os portugueses queixam-se dos sucessivos cortes nos programas sociais, do aumento de despesas com a saúde, da insegurança no trabalho, da precarização crescente?
São vozes duma esquerda ultrapassada, pois ninguém dá lições de esquerda ao nosso primeiro. Tony Blair, ao dar um abraço cúmplice a Sarkosy numa reunião da direita francesa, com menosprezo pelos seus correligionários franceses, também poderá continuar a reclamar-se de esquerda, em nome dessa cartilha da linguagem liberal que define a esquerda fazendo revisionismo da história. E, como ele, Shröeder, Strauss Kahn e outros liberais que se exibiram esta semana em Davos.
No debate televisivo sobre a nova lei do consumo do tabaco, foi evidente a capacidade de intervenção pública do Director-Geral de Saúde, Dr. Francisco George, correcto nos princípios, didáctico nas explicações. Mas não pôde esconder uma certa precipitação da Administração Pública na execução da lei. Ficou claro após a intervenção do Dr. Sá Fernandes que a lei necessita de regulamentação mais precisa, que não compete à Direcção-Geral suprir, mas ao Governo adoptar. É necessária legislação de execução que estabeleça os parâmetros técnicos da legalidade das instalações, pois só de forma precisa, e não com interpretações de geometria variável, se pode afirmar que há infracção. A certeza do direito deve primar sobre a febre reguladora. A ASAE não pode objectivamente fiscalizar a aplicação da lei sem essa definição precisa dos parâmetros técnicos.
E por falar de linguagem política e da ASAE, vem a propósito precisar que há diferenças de nível na comunicação pública de alguns políticos. Se a linguagem estereotipada da clique política liberal deve ser desmontada no debate político sério, há uma outra, mais boçal, populista, que, sem atacar as questões de fundo, joga na emoção e na ignorância do eleitorado menos informado e que deve ser proscrita no debate público.
O disparate que o senhor Mendes Botas proferiu ao comparar a ASAE à PIDE é deste segundo tipo. Aproveitando o justo repúdio dos portugueses - dos que ainda se lembram – por uma polícia política que actuava à margem da lei e sem controlo democrático, que assassinava para proteger um regime ditatorial, que castrava a palavra e a criatividade, cujos métodos violavam a própria lei e que se assegurava a própria impunidade condicionando os outros poderes do Estado, esta afirmação do senhor Botas deve ser repudiada com firmeza. Talvez ele não se lembre muito bem e só tenha ouvido falar. Afinal, era um jovem de menos de vinte anos quando tal polícia foi, finalmente, extinta. Mas as suas responsabilidades políticas e uma carreira já significativa num dos partidos do círculo do poder deviam aconselhar-lhe algum tento na língua e alguma elevação no debate.
A luta política não pode justificar todos os meios. A ASAE é um organismo do Estado democrático, criado por lei e actuando nos limites da lei. Contra os seus actos os cidadãos têm meios de recurso para os tribunais. E é possível demandar o Estado por eventuais abusos cometidos pelos seus agentes. A fiscalização das actividades económicas é indispensável para proteger os consumidores. Os limites da sua actuação são determinados por lei e não por capricho dos seus agentes. E, se algum excesso de zelo é condenável, que se faça condenar no lugar próprio. Mas estou em crer que tanta reacção a quente tem que ver com a habitual bandalheira da economia paralela ou com alguma incompetência de muitas pequenas empresas, instaladas nos nichos de negócio do endémico desenrascanço. E isto tem de acabar num país que se integra no espaço europeu.