Pega uma pessoa numa publicação qualquer mesmo já dos tempos mais antigos, e não encontra referência à região do Alto Douro, onde não seja visível e tratada a crise do sector da vinha e do vinho, com muitos gritos de
alguém que nos acuda que nos levam tudo e nos matam à fome. Aliás o próprio acto da demarcação mais não foi do que uma tentativa profunda para se dealbar e regular um sector em tormenta para muitos, e com muito boas entreabertas para uns poucos.
Isto claro, para além de ter sido um modo bem eficaz de o poder centralista deitar mão a uma actividade económica que em poucos anos se tinha afirmado como uma das mais promissoras e uma daquelas onde eram geradas as mais chorudas mais-valias. Este termo ainda não seria conhecido pelos homens de há duzentos e cinquenta anos, mas é o mesmo, pois não seria por uma questão de nome ou de conceito, que a riqueza não era sabida como tal.
Regulou-se então com um saber suficiente para ainda hoje ser actual, foram-se alargando mercados e foi-se estendo o território sob regulamentação, e transformou-se o produto em algo valiosíssimo logo tido como primeiro entre os primeiros depois de brotado deste chão estendido ente o Minho e o Algarve paredes meias com a Espanha e com o mar imenso.
Caso alguém se dê ao trabalho de olhar para o modo como historicamente entretanto os modos de ver e de agir se foram verificando e implantando, igualmente logo se apercebe de duas concepções distintas suportadas por contextos políticos gerais e com pouca ou nenhuma origem na região. Sempre que no poder politico do Reino e depois da Republica tiveram assento defensores de teorias mais autocráticas e mais absolutistas, ganhava força a Companhia criada pelo marquês do Pombal, e por essa via, mais intervencionada e regulamentada era a actividade no sector vinícola na região do Douro. Tudo indica que na sua inquestionável visão de grande estadista, Sebastião José de Carvalho e Melo, logo se apercebeu das especificidades da lavoura duriense, ou mais propriamente do vinho do Porto, e porque elas existiam, havia que ter cuidado. Porque o negócio era proveitoso, mas desigual, não podia ser entregue às contingências meramente conjunturais, e só podia funcionar a contento para as partes, quando devidamente regulado.
Pelo outro lado, sempre que o ceptro esteve na mãos de defensores das teorias da politica liberal, perdia força a Companhia. Perdeu-a de tal forma, que foi extinta em 1851 já com o liberalismo definitivamente implementado em Portugal, para contentamento de uns e para forte desagrado de outros. Está nos livros, que quanto mais fraca estava a Companhia, mais desprotegidos se sentiam aqueles que granjeavam as videiras e produziam os vinhos que sempre foram e são a essência do negócio. Nada tardou que de chapéu na mão, tivessem de mendigar a compra dos seus néctares aos poucos que tinham e têm a profissão de os comprar para depois os vender. Neste anda que não anda, grassou em largos períodos a fome no Douro, e campeou a miséria em simultâneo com o maior regabofe e com a mais real abastança. A penúria de uns, sempre pareceu ser a melhor garantia para a barriga farta de outros. Mesmo entre os que na região viviam em redor das vides que davam o sustento das vidas, nem sempre este foi justo e devidamente repartido para que os estômagos se não colassem às costas que acartavam ou enchiam os cestos vindimos.
Já quase na nossa era, em 1932, com um Estado Corporativo e ditatorial a nascer, para obviar os enormes problemas e a mais uma vez enorme crise, fundou-se a Casa do Douro que depois recebeu delegação de competências do Estado, e que por essa via, regulamentou a actividade. Grosso modo, décadas depois, quase um século, substituiu a Companhia oitocentista de onde o Douro vinhateiro nasceu.
Mas como dizia o poeta, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, e essas agora germinam não na capital do país, mas antes na da União Europeia, por entre os corredores labirínticos da burocracia e da tecnocracia, que como se sabe, são desenhados ao jeito dos membros e dos interesses economicamente mais fortes.
Neles, o Douro mais não é do que um pequeno ponto na parede impessoal de um qualquer gabinete, e no devido tempo, não se soube ou não se pôde pela parte de Portugal fazer ver as características únicas da lavoura duriense. Não se entendeu o que foi entendido há dois séculos e meio, e entregaram-se as regras quase ao livre arbítrio e ás contingências do mercado, ainda que por cá, meia dúzia compre o produto que trinta e tal mil produzem, sem que se repare que assim não pode dar certo. Levantam-se clamores, aludem-se interesses egoístas e inconfessáveis, a par de eventuais soldos, mas reflecte-se muito pouco ou nada.
A causa das coisas poucos se dão ao trabalho de a perceber, mesmo que tal seja imprescindível. Quase tanto como acabar aqui o artigo, que já vai quase tão longo como o esquecimento que permitimos que sofra este nosso Douro que nos estremece.