Um cidadão atento não pode contentar-se com a declaração mais ou menos emblemática, e quanto mais emblemática mais balofa, de que a democracia é o pior dos regimes com excepção de todos os outros. Isto é muito bonito, mas, para ser verdade, é necessário que nos entendamos sobre o que é a democracia mínima e quais os limites que ela consente aos que exercem o poder.
Com efeito, já vimos regimes legitimados democraticamente tornarem-se ditatoriais, e, nos países a que hoje, no nosso tão glorificado Ocidente, chamamos democracias, os escândalos sucedem-se um pouco por toda a parte, colocando a questão de saber se tais limites não foram espezinhados pelos titulares dos cargos políticos. Quatro exemplos representativos:
Inglaterra: É ou não é verdade que o governo Blair mentiu aos cidadãos quando pretendeu convencer a sua opinião pública de que a intervenção no Iraque era indispensável? É ou não verdade que a maioria dos cidadãos britânicos já não confiam no seu governo?
Itália: É ou não é verdade que Berlusconi se serviu do poder para manipular as instituições e pôr-se ao abrigo de perseguições penais por graves infracções na gestão das suas sociedades?
É ou não verdade que os conluios entre o poder e o mundo do crime organizado conduziram neste país, no fim dos anos oitenta, à maior operação judiciária de que há memória em países ocidentais, a chamada operação mãos limpas?
França: Quantos políticos de primeiro plano abandonaram a cena política nos últimos anos depois de se verem envolvidos em escândalos financeiros ou corrupções? O que se passa actualmente ao mais alto nível do Estado, quando o chefe do Estado e o Primeiro Ministro estão sob fortíssima suspeita de manipulação de informações com o objectivo de queimar um concorrente no interior do próprio partido?
Os exemplos podiam multiplicar-se, na Europa e na América, e conduzem os eleitorados a posições que parecem ilógicas mas não o são: a rejeição do tratado constitucional europeu em França e nos Países Baixos teve muito que ver com a rejeição dos métodos políticos seguidos no processo europeu. Os povos não admitem ficar à margem das decisões, e é isso que tem acontecido na construção de Europa. Não se diga que a rejeição em dois países não foi significativa. Se houvesse referendos em todos os países é quase seguro, face às sondagens de opinião, que a resposta seria maioritariamente negativa. Estas democracias já não representam ninguém a não ser os interesses minoritários que as manipulam e controlam.
E o que se passa em Portugal, onde os principais escândalos que chegam ao conhecimento da Justiça acabam por ser arquivados por falta de provas ou por prescrição?
É neste contexto que deve ser apreciada a entrevista do Prof. Manuel Maria Carrilho à RTP.
É verdade que o ex-ministro da cultura tem um perfil público capaz de o fazer perder sozinho qualquer eleição: demasiado culto para a média do eleitorado, demasiado independente do partido a que pertence, algum gosto por um certo vedetismo social, pouco à vontade em banhos de multidão. Por isso, a sua candidatura à Câmara de Lisboa estava perdida a partir do momento em que se gorou a hipótese duma coligação de esquerda. Mas essa não é a questão. O que está hoje em causa é o que ele denunciou, chamando, como sói dizer-se, os bois pelos nomes:
É ou não é verdade que uma agência de comunicação (seja lá o que isso for), se propunha comprar a opinião de jornais e jornalistas, tendo chegado a afirmar que tinha alguns na mão?
É ou não é verdade que um senhor arquitecto que tinha interesses chorudos em várias obras de Lisboa se propunha vir a ser a segunda figura da Câmara, onde pretenderia guardar cerca de oitenta por cento do poder municipal?
Estas questões têm de ser investigadas e esclarecidas. Os cidadãos têm o direito de saber se há eleições compradas e se há Câmaras manipuladas por interesses privados, e se há jornalistas e jornais que atraiçoam o compromisso de informação isenta que têm com o seu público. E se isto acontecer, é óbvio que os limites mínimos da democracia foram pisados há muito. E se esta democracia já não é a que representa o menos mau dos regimes, então há que construir outra, mais aberta à fiscalização popular, mais directamente responsabilizada perante os cidadãos. Há talvez que pensar na possibilidade de revogação dos mandatos e na forma mais eficaz de submeter os responsáveis pelas instituições a uma verdadeira prestação de contas e a uma justiça eficaz e transparente.
É que a podridão ocasional escondida corrompe todo o sistema político. Por isso, deve ser extirpada a tempo de salvar o essencial do sistema: uma democracia em que a vontade dos eleitores não seja sistematicamente defraudada.