Na semana em que o novo governo tomou posse, os factos de interesse público mais mediáticos acabaram por ser as detenções de altos funcionários da Administração Fiscal e alguns elementos da Brigada de Trânsito da GNR.
Em ambos os casos a polícia judiciária terá encontrado indícios suficientes de corrupção para os fazer comparecer perante o juíz de instrução criminal; e o facto de alguns dos suspeitos terem ficado detidos, torna tais indícios mais sérios.
Estes factos, ocorridos logo após umas eleições precedidas por uma campanha eleitoral extremamente agressiva, levam-nos a pensar que, se tivessem ocorrido durante a própria campanha, não deixariam de ter consequências no debate então em curso, já que parece ser norma da arena política usar todos os argumentos, por mais arrevesados que sejam. Não deixaria de haver a tentação de imputar tais alegados actos "ao governo que temos"! Felizmente que o caso veio a público numa altura em que, relativamente ao governo cessante, se pode afirmar que foi bem conduzida a investigação e, relativamente ao novo governo, que o mesmo nada tem a ver com isso e apenas se espera que tire daí as cautelas que se impõem.
A realidade da sociedade portuguesa - já o escrevi várias vezes - não pode ser imputada apenas ao governo, seja ele qual for. Nos tempos modernos os governos até têm limites de governação bastante estreitos, condenados que estão a gerir entre poderes fácticos contraditórios e poderosos. Não sendo nós dos que pensam que os governos se devem reduzir ao fatalismo duma gestão consensual (tipo Guterres) ou às exigências de uns poucos agentes económicos que se querem sobrepor ao Estado (governos liberais modernos), também não temos dúvidas em afirmar que os governos têm limites estreitos e que as campanhas eleitorais que fazem são perfeitamente demagógicas e de má fé.
Mas os governos representam opções dos povos para determinados momentos. Até dá a impressão de que, nas democracias formais como a nossa, o povo se resigna a colocar alternativamente no poder os partidos que fazem políticas contraditórias para, em tempos distintos, favorecer ora a acumulação da riqueza ora a sua distribuição. Se isto fosse verdade, significaria que o povo não acredita que um só governo possa fazer as duas coisas.
Ora, eu penso que o povo tem razão. Os governos que têm uma orientação política homogénea, porque resultam dum único Partido ou duma coligação com base ideológica idêntica e com clientelas políticas próximas (como penso que é, em grande parte, o actual), não podem pretender ser bons governos para todo o povo; o povo não é todo igual e os interesses dos cidadãos são contraditórios. Não me venham dizer que o rigor é necessário ao país, porque isso é uma abstracção. O rigor é necessário para não exigir mais aos mais ricos e fazer recair o fardo das dívidas ou dos desequilíbrios financeiros sobre a maioria da população. Por isso, as políticas de rigor serão sempre prejudiciais aos economicamente mais fracos e agravarão as diferenças entre os mais ricos e os mais pobres.
Dir-me-ão que, em contrapartida, essas políticas criam emprego e, a prazo, melhorarão a vida dos mais pobres. Isso também pode ser verdade, mas quando falamos de pessoas, não o é. As pessoas a quem hoje se pede que apertem o cinto não são seguramente as que vão num futuro fixado vagamente no horizonte beneficiar desses sacrifícios. E as que acumulem hoje riqueza à custa do apertar do cinto dos mais fracos não vão certamente sofrer no futuro uma sangria na riqueza acumulada.
Fiquemo-nos, portanto, com a ideia de que os governos não são bons ou maus para toda a gente, mas apenas para os sectores da sociedade cujos interesses representam. E contentem-se com isso, que não é pouco, já que mesmo os que neles se não revêem lhes conferem a legitimidade da governação, ainda que por mera resignação.
Mas há questões em que nenhum governo pode transigir, porque delas depende a credibilidade do Estado e a sua eficácia. Uma dessas questões básicas é da honestidade, imparcialidade e eficácia da Administração Pública. Quando até fora do País se relata que Portugal é o país mais corrupto da Europa, isto não pode deixar um governo indiferente.
Os casos que vieram a público são sintomáticos. Numa sociedade que valoriza os sinais exteriores, o apelo da ostentação posterga valores fundamentais da dignidade humana. Ninguém quer saber donde vem o dinheiro. Ora, os funcionários públicos têm salários que são públicos. Altos ou baixos, esses salários devem permitir-lhes fazer uma vida digna e colocá-los ao abrigo de tentações.
Nunca me verão criticar os salários dos funcionários ou dos representantes políticos. Mas o Estado que lhes paga e a sociedade que a eles recorre deve poder confiar neles. E que sa saiba duma vez por todas: a vocação da carreira de funcionário público não é fazer enriquecer ninguém, mas garantir-lhe uma vida digna. Nas sociedades que o permitem, quem quer enriquecer vai para os negócios, para o risco. Vender a confiança pública é um crime odioso e o mais cobarde e deve ser combatido com medidas drásticas.
Mas o que mais dói na nossa sociedade é a brandura do julgamento público destes casos. Se abrirmos os espaços de conversa na internet, verificamos que muitas mensagens não só aprovam os casos de corrupção como declaram ter participado neles...pagando ao agente para não pagarem multas. É sempre assim: não há corruptos sem corruptores.
É por isso que os casos trazidos a público a respeito da Administração Fiscal são mais graves: bem pode o governo fazer reformas fiscais. Nos anos setenta e oitenta esta administração beneficiou da promoção duma jovem camada de funcionários de alto nível, que hoje constitui a sua direcção superior. A permeabilidade generalizada ao pequeno favor e ao pequeno envelope pelo Natal que foi corrente nos últimos anos do salazarismo e do marcelismo - e quase já nem era censurada - terminou com a nomeação dessa geração de quadros. Posso afirmar que, ao mais alto nível, a administração fiscal dispõe de gente competente e séria. Mas enquanto houver empresas que comprem funcionários para reduzir os impostos, enquanto houver uma promiscuidade chocante entre antigos altos funcionários, funcionários no activo e interesses privados, enquanto se partir do princípio de que não havendo provas não há corrupção, enquanto não houver mecanismos preventivos que ataquem as razões do mal (transferências frequentes, inspecções sérias e inquéritos aleatórios ao património, investigação sistemática dos indícios), a corrupção continuará a imperar porque se encontrará sempre um elo mais fraco ou menos digno. E digam-me lá se isto terá alguma coisa a ver com Finanças Públicas!