Pelo Natal, a cidade de memória curta gosta de encontrar, como recanto exótico que fica bem na sua feira de vaidades, a aldeia esquecida do interior, isolada pela natureza, pelo esquecimento, pela sobranceria piedosa de políticos de opereta.
A aldeia é, no entanto, muito mais que isso. Está fora de moda e suscita desconfianças o apelo à ruralidade. O alegado provincianismo é tido como sinónimo de conservadorismo e até de reacção ao progresso. Ora, o certo é que boa parte dos políticos têm raízes nas aldeias do interior, já que o fenómeno da macrocefalia urbana tem apenas duas ou três gerações. E o facto de aí terem laços de família ou de propriedade deveria responsabilizá-los, ao menos moralmente, na busca de soluções de progresso adequadas à especial sensibilidade das populações rurais. Parece, pois, absurda a condescendência quase caritativa com que se trata o interior, como se fosse inexorável a morte definitiva dos pequenos povoados, das actividades de autosustentação ou dos valores que por aqui ainda persistem.
Assistimos nos últimos anos à reinvenção de tradições interrompidas (mas não esquecidas). Por todo o interior se festejam em moldes tradicionais o Natal com as suas ceias, a passagem do ano com os seus madeiros a arder em fogueiras rituais, os Reis com o cantar das janeiras e o leilão do galho de fumeiro. Se é certo que, nalguns casos, a motivação principal é a recolha de fundos para obras de maior ou menor interesse colectivo, há noutros uma sincera recuperação de sentimentos de solidariedade e vizinhança que desarma os mais sensíveis.
Com um grupo de conterrâneos, percorri em noite fria as poucas casas habitadas da minha aldeia. Eram exactamente vinte e cinco os lares onde o fogo ainda aquecia os muros de pedra e gente muito nova ou muito velha. Lembro-me ainda de residirem na maior parte das casas hoje adormecidas por longas ausências famílias grandes, de três gerações; nos anos cinquenta a aldeia teria seis vezes mais pessoas do que actualmente. O que pretendeu ser um gesto de simpatia em breve se transformou num rio de emoções. As lágrimas duma viúva solitária ou dum casal de velhos na casa dos oitenta eram contagiosas. A naturalidade com que o grupo se dirigiu a casa duns imigrantes ucranianos, que festejavam nesse mesmo dia o seu Natal pelo calendário juliano, arrasou num momento preconceitos, barreiras culturais, linguísticas ou religiosas, tradições díspares, e uniu num abraço profundamente humano gente de horizontes e raízes diversos.
E no entanto…
Dois dias depois a nossa televisão faz eco das queixas de imigrantes brasileiros, nossos irmãos de língua e de cultura, se não mesmo de sangue, escorraçados em duas horas da casa agrícola em que eram explorados em horários desumanos, no distrito de Beja. O empresário ousa afirmar na cara de todo o povo português, com o descaramento imbecil de quem faz o mal e a caramunha, que, sem os imigrantes, já teria fechado a empresa, mas que não admitia que, estando eles ilegalmente no país, tivessem quaisquer direitos sociais.
Não sei se este empresário celebrou o Natal em família ou se o Natal representa para ele mais do que o conforto que lhe proporciona uma sala de ordenha onde escraviza imigrantes brasileiros clandestinos. Sei que, na minha aldeia, onde não chegaram certamente os novos métodos de gestão lucrativa da mão de obra barata, os dois únicos estrangeiros residentes foram integrados na alma, na solidariedade, na humanidade simples dum cantar dos Reis. E fico sem saber onde se encontra a verdadeira identidade do nosso povo: se na xenofobia boçal que exclui por ganância, se numa humanidade velha que teima em chamar irmãos a todos os homens.